O Projeto Rondon foi criado na década de 1960, quando uma equipe formada por 30 universitários e dois professores de universidades do antigo Estado da Guanabara, conheceram de perto a realidade amazônica no então território federal de Rondônia. A primeira missão teve a duração de 28 dias. A proposta de criação do projeto surgiu dos próprios estudantes, que, ao retornar de Rondônia, tinham o desejo de prosseguir com as atividades desenvolvidas no estado visitado. O nome do projeto é uma homenagem ao bandeirante Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958).
A “Operação Tocantins” ocorreu entre 20 de janeiro e 05 de fevereiro de 2017, e contou com a participação de 32 Instituições de Ensino superior e 320 rondonistas voluntários. Foram atendidos 16 municípios do estado do Tocantins.
Eram os intermináveis 1.356 quilômetros que separavam o estado do Paraná do nosso destino final. Eram os 15 dias mais marcantes de nossas vidas. Eram os mais de 290 quilos de bagagem que nos faziam suar e respirar fundo. Operação Tocantins. Uma tonelada de sonhos…
Embarcamos na madrugada do dia 19 de janeiro. O coração já não cabia no peito, parecia sonho. Sim, um sonho que estava do outro lado do Brasil, ao norte, bem no centro, como se estivéssemos indo para dentro de nós mesmos. Nosso destino era Brejinho de Nazaré, uma cidadezinha do interior do Tocantins. Tão pequena quanto a nossa imensidão e o nosso conhecimento sobre esse país gigante.
A equipe era formada por duas professoras e oito graduandos da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Graduandos das mais diversas áreas, desde a Medicina Veterinária até às Letras. E haja poesia para tanto amor envolvido: o avião cruzava o Brasil e nos levava para mais perto das pessoas, mais perto do mundo. Nossos sonhos também iam guardadinhos no peito. Durante dois meses, passamos por um processo de capacitação intenso, discutindo, propondo e programando oficinas e atividades nas áreas da Comunicação, Meio Ambiente, Tecnologia, Produção e Trabalho. Firmamos parceria e trabalhamos em conjunto com a Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), que desenvolveu atividades nas áreas de Cultura, Direitos Humanos e Justiça, Educação e Saúde.
Em geral, cada rondonista trabalhava com a área em que tinha maior afinidade. Mas isso não impedia a troca de saberes entre os acadêmicos e entre a comunidade. Era necessário ser multiprofissional e estar disposto a encarar a realidade brasileira, na qual éramos confrontados a todo o momento.
O mais engraçado é perceber que o Projeto Rondon havia começado muito antes do que imaginávamos: a cada dia o nosso senso de responsabilidade crescia, e era necessário ter muita responsabilidade sim. O conhecimento estava ali, em nossas mãos. Era preciso capacitar as pessoas, formar multiplicadores. Era preciso rever nossos conceitos, era preciso nos autoconhecermos para entendermos o outro. Era preciso sonhar, porque é o sonho que conhece o diferente, é o sonho que nos move.
Mal sabíamos nós que as nossas malas não suportariam carregar esse sentimento imenso e inesquecível que é o Projeto Rondon. É sentimento que não cabe na mala, não cabe na alma, transborda e transforma. Nos transforma.
Tudo aquilo que líamos sobre o cerrado brasileiro, de repente estava ali, tão vivo perante os nossos olhos. A cidade de Palmas exalava todo o poder de uma capital planejada, que por sinal é a mais nova de todas as capitais brasileiras. Por aquelas bandas, o sol ardia ainda mais do que o normal, isso porque o dia demorava a amanhecer e a gente não conseguia segurar a ansiedade, a nossa vontade. As pessoas carregavam a esperança de mudança nos olhos. Dava pra ver isso. Estava nas mãos das merendeiras, nos pés das crianças nuas que brincavam na rua tão inocentes, nos velhos simpáticos sentados na beira das calçadas, nas senhoras que manobravam bicicletas como ninguém, nos meninos e meninas que, na flor da idade, estavam a derramar sonhos e mais sonhos pelos olhos. Porque o sonho existe muito antes de qualquer coisa, sabe? Parece que é um elemento que nasce enraizado no ser humano, essa força estranha que nos obriga a resistir contra as desigualdades, contra as ofensas da vida. É necessário “resistir para existir”, já dizia a militante árabe Leila Khaled.
E parece que tudo passa a fazer sentido, a vida passa a fazer sentido: uma cidade cheia de pessoas e problemas, pessoas que não acumulam coisas, nem bens materiais, pessoas que acumulam histórias e experiências. E pouco a pouco essas histórias vão ganhado nomes, vão ganhando vozes. Ah! Não éramos heróis, nem tínhamos esse perfil de salvadores da pátria. Éramos meros aprendizes, tão fascinados pelo conhecimento e loucos para conhecer esse Brasil imenso, esse Brasil que se mistura e se confunde, que se encontra e se desconhece, esse Brasil que está muito além dos livros.
Brejinho de Nazaré guardava toda uma história de tradições, amores e crenças. Era preciso evidenciar essa riqueza e fazer valer a cultura local, a expressão do povo. Desembarcamos na cidade e a recepção não poderia ser melhor: comidas típicas, música, abraços e muita vontade de conhecer o mundo. Acomodamo-nos na creche municipal, que servia como um espaço de interação com as crianças do bairro. Acordávamos cedo todos os dias. O café da manhã era servido às 7 da manhã, e as atividades iniciavam-se às 8 horas. Todos os dias, dois ou três rondonistas eram encarregados de divulgarem as atividades do projeto na rádio. Também fazíamos divulgação após as missas e cultos, visitando todas as igrejas da cidade, entregando convites e ouvindo as pessoas. E todo esse ritual tinha uma sabor especial de amor ao próximo. Todo dia, a todo o momento, um exercício contínuo de alteridade, de amor e confiança no próximo.
Ah! Aquele nosso colete amarelo… Tão simbólico e orgulhoso, parecia combinar com a luz e carinho que irradiavam todas aquelas pessoas-sonhos. Pessoas essas que abriam sorriso fácil quando nos viam, cheios de si e amantes de sua cidadezinha. Pessoas que lotavam salas de aula, pessoas que participavam ativamente das oficinas de teatro, fabricação de pães e artesanato. Pessoas que sentiam importantes só pelo fato de estarmos ali, do lado delas, ouvindo-as. E nós ouvimos todo mundo, as mulheres, os homens, as crianças, os idosos, os estudantes, os moradores da Comunidade Quilombola Malhadinha, e o professor Jacob, com seu tom nostálgico de contar a história da cidade.
Todos os estudantes que participam dessa experiência são capacitados para enfrentar essa realidade brasileira, esse Brasil escondido de nossos olhos, e contribuir com o empoderamento dessas populações, reverter os indicadores negativos e criar multiplicadores de conhecimento na cidade. E acaba sendo uma lição atrás da outra, um aprendizado maior do que o outro.
Em geral, os municípios escolhidos para receber esses estudantes são municípios que apresentam altos índices de analfabetismo, famílias vivendo em situações de extrema pobreza, prostituição e trabalho infantil, altos índices de violência contra a mulher, problemas relacionados à conservação estrutural e crescimento desordenado, com lixões a céu aberto, lixo nas ruas, falta de saneamento básico, precariedade na educação e ineficácia nos serviços de saúde e segurança pública.
Foi por meio de oficinas e atividades culturais, desenvolvidas a partir das necessidades do município, que criamos uma maior participação social. Era preciso formar multiplicadores e agentes comprometidos com o desenvolvimento sustentável, com a promoção da qualidade de vida e com o resgate da história, culturas e crenças da cidade. Foram muitas as atividades realizadas. As mudanças são visíveis: trabalhamos na montagem de uma biblioteca infantil e construímos uma horta mandala e estufa móvel no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Símbolo de união e do trabalho em grupo: era isso que a construção daquela horta representava, e dizia muito sobre o real significado do Projeto Rondon.
Além disso, trabalhamos com a oficina de alimentação alternativa, que pretendia levar hábitos mais saudáveis e sustentáveis, e com a oficina de panificação, fabricação de queijos e conservas, que pretendiam melhorar a renda e ativar o comércio local. Tratamos de levar soluções e métodos de tratamento para a saúde de animais domésticos. Mas também tratamos da saúde humana, da nossa saúde. E as mudanças mais importantes são as internas, aquelas que não se podem ver ao olho nu, mas que está na atitude de cada criança, na atitude de cada um que abre seu coração e conta sua história de vida pra gente. É um estímulo para o amor ao próximo. Ah! E como é lindo e imenso o amor ao próximo…
Nas oficinas de fotografia, a alegria e o brilho nos olhos eram envolventes. Cada criança teve a possibilidade de mostrar seu mundo e tudo o que enxergava nele através da câmera fotográfica. Muitos deles, fascinados, nunca haviam parado para observar a beleza das coisas à sua volta, a beleza contida no sorriso de um amigo, a beleza daquela casa abandona que ninguém dava a mínima, ou a beleza da pobreza. “A pobreza também pode ser linda às vezes, né professor?”, me perguntavam. E eu, na minha sensibilidade de humano e acadêmico, aprendi que é preciso lutar por tudo que acreditamos, e mesmo que não saibamos a letra da música, é necessário mostrarmos a nossa voz, o nosso ponto de vista. É impossível esquecer o sorriso de cada uma daquelas crianças, um sorriso cheio de vida e sede de mudança.
Mas é necessário somar nossas forças para o bem comum. Por isso tivemos, desde o princípio, auxílio do Governo do Estado do Tocantins e da Prefeitura de Brejinho de Nazaré e suas secretarias, sem contar o apoio logístico recebido pelas Forças Armadas do Brasil e pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
E a despedida? Depois de mais de duas semanas de aprendizados, abraços e lutas, parece que essa palavra já não existia mais. Era preciso voltar para a casa. Mas como? O Brasil é grande demais, menino. Tem muitos sabores, muitos rostos, muitas cores, muitas crenças e ritmos. É tão grande que parece que metade do meu coração deve ter ficado lá no Tocantins. Ele está sendo bem cuidado sim, tenho certeza disso.
Fizemos muitas amizades, amizades para a vida interia. Voltamos, mas com a enorme vontade de ficar. Voltamos diferentes, voltamos mais humanos. Alguns com o choro entalado na garganta, outros com os olhos encharcados de saudade. Saudade é tudo que fica. Saudade e amor. O conhecimento adquirido é parte do ciclo da vida, ciclo de desenvolvimento.
Se aprendemos algo com o Projeto Rondon? Aprendemos, aprendemos sim, muito mais do que ensinamos. Aprendemos algo que vai além do lema “Lição de vida e de cidadania”, transformamos nossa equipe em família e trabalhamos juntos, não para a população, mas com a população. E a pergunta fica ainda mais difícil. Tão difícil quanto descrever essa experiência com palavras, que no momento parecem fugir de mim. Mas é necessário dizer: o Projeto Rondon é sobre aqueles sonhos que nunca morrem. É sobre aquela menina que sonha em ser desenhista e morar na Alemanha, é sobre aquela outra que sonha em ser cantora, sobre aquele moço que sonha em publicar um livro, ou sobre aquela mulher que há muito tempo não sentia as águas do Rio Tocantins tocarem seus pés. Ou só sobre aquele menino, que talvez se chame Alex, que só queria que não houvesse mais guerras e que um dia pudesse dormir numa cama que fosse só sua e de mais ninguém. É também sobre a Dona Messias, a maior criadora de receitas sobre amor e gratidão que esse mundo já viu. É também sobre aquele velho de bicicleta que sorri por nenhum motivo. É felicidade escancarada, sabe? É tipo tatuagem. O Projeto Rondon é sobre histórias. Histórias que ganham nomes, e é, principalmente, sobre gente. Sobre gente que ganha voz, uma voz que se mistura aos sorrisos e esperanças: sala de aula é qualquer lugar!
Luiz Henrique Moreira Soares (Jaboti, Paraná, 1995). Acadêmico de Letras na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
As fotografias apresentadas com o texto são de autoria de Bruna Fermino, Aldailto Pires e Luiz Henrique Moreira Soares.
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