Cada homem/mulher está na Terra para simbolizar algo que ignora e para realizar uma partícula, ou uma montanha, dos materiais invisíveis que servirão para edificar a Cidade de Deus.
Devemos inverter nossos olhos e exercer astronomia.
Não há na Terra ser humano algum capaz de declarar quem é com certeza. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas ideias, nem qual é o seu nome verdadeiro (…) A história é um imenso texto litúrgico.
Leon Blóy, citado por Borges em Outras Inquisições
Por enquanto, em garantida segurança, própria e coletiva, Apolônio encontrava-se nauseabundo sob os efeitos da mistura de soro, anestesia e sonolência. Após o coma induzido, entrava no terceiro dia sentado sobre uma cadeira metálica e fria, de frente ao janelão de vidro. O homem mergulhava a cabeça nas mãos. Ostentava sinais de confusão. Olhava para os seus pés amarelados, as unhas crescidas e considerava a necessidade de uma tesoura para cortar aquelas unhas. Os dentes não crescem como as unhas, refletiu. E o cabelo? Afora, a neve de São Pedro em queda livre sobre o deserto sufocante de ébano se avolumava. Cactos floridos e os quetzals rodopiavam em espirais. Do horizonte, Apolônio recortara, em forma de mancha solar, um nobre cão. O animal corria de lado a lado, abanava o rabo nervoso. Homem e bicho atraíam-se por uma linha de material invisível que funcionaria como uma espécie de coleira.
No quarto vizinho ao de Apolônio, a mulher vermelha estava seminua, despenteada, esfomeada, no cio, imunda, com as unhas roídas. Afirmava-se Nossa Senhora, apontava para o seu monte de Vênus e dizia que dali sairíam Messias.
“Há muitas coisas sobre a Terra que não seriam nada para os habitantes de Vênus”, bradava a mulher vermelha no afã da religiosidade.
No princípio, a equipe de enfermagem não a levara a sério, a voz convicta os dissuadia. Para que a mulher vermelha se acalmasse, alisaram o seu cabelo, limparam-na inteira com uma espuma carcomida, trocaram a camisola branca que vestia e a medicaram a ponto de assemelhar-se a uma monja e atingir condições de ficar a sós. Apolônio não ouvira o surto porque se distraía acenando compulsivamente ao cãozinho.
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Em Mumbai, os hospitais colocam os pacientes frente a frente aos cães para se entreolharem e a cura se realizar. Não era este o milagre.
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O nobre cão Zamor fora parar nos jardins do sanatório devido a incompetência do Alto Comissariado de Importação de Animais Domésticos administrado pelo então Dom Gonzalez, comparsa na rota das galochas e aliado de Madame Petróvska e demais sequestradores do barítono Pietro Paolini.
Tal se sucedera a história: uma caixa chegada de Valparaíso fora indevidamente aberta por um estivador e o animal saltara em liberdade, frustrando a intenção de Madame Petróvska, que providenciara a importação do cãozinho, ou um sósia, para chantagear o barítono.
No abrigo, Pietro Paolini implorava sobre o leito de Proscuto pela companhia de Zamor. O arrependimento do barítono por haver abandonado o bicho de estimação durante a fuga dos palcos datava das lamúrias nos quatro cantos do Quadrado K-4, a praça Alfred Jarry nos dias anteriores ao sequestro. A tribo dos engraxates espalhara chistes e boatos em ondas arremessadas pelos camarotes. As bocas desdentadas divertiam-se com jocosidade às custas de qualquer um. A rígida tensão dos membros do barítono fracassara em sabido encontro romântico. Um homem que perde o cão é um homem sem potência, regozijavam os limpa-botas ao brindarem com doses de meZcal sob o calor dos fogareiros de carvão e indiferentes ao fato de que o álcool esclerosava os seus tecidos. A maioria dos engraxates não possuía perros.
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A mulher vermelha se colocara no umbral do janelão do seu quarto, de onde, também ela recortara um cão em forma de mancha solar e ludibriava-se com o colorido das aves instantaneamente transparentes devido a velocidade das asas.
Ao perceber o sexto ato de uma tragédia, Zamor ganira para Apolônio, que sequer percebia que a mulher vermelha poderia rolar quatro andares. Entretanto, o focinho erguido do cão o convencera a sair da apatia e averiguar o que se passava no quarto ao lado.
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No tocante ao rosto da mulher vermelha, repare-se que mudava sem parar, avançava no tempo, criava rugas e depois regredia às feições de uma menina! Aquele rosto não teria fim, como ditou Zeno. Já as suas pernas dissimuladas sob a saia comprida da camisola balançavam. Daquela altura, sentia que era fácil amar, amar Buenos Aires ou Santa Maria, ao menos um instante. Era de la Plata, éramos todos de la Plata, insistia. Então, ergueu-se. Abriu os braços, posou os pés juntos e estreitos no batente. Cercada pelo véu dos cabelos, girava as mãos como um brinquedo mecânico, ouvia o tinir dos ossitos. Um arrependimento das juntas e a mulher vermelha arriscava fazer-se inorgânica. Anjo. Para contrariar a sorte, deu meia volta e virou as costas ao cãozinho Zamor. Abaixou-se para não bater a testa na esquadria e reentrou no quarto onde a corcunda de Apolônio a espantou.
Apolônio esforçava-se, de pé, esperando-a. Rapidamente, a mulher vermelha elogiou a pontualidade dele, pontual como o relógio redondo afixado na parede, ou o sol surrado de azeviche.
– Estou noiva.
– Ah, sim?
– Não me viu desfilar diante do Templo de Salomão sob o cartaz em letras prateadas a anunciar o concurso de beleza universal? Nestas paragens, as noivas competem entre si, medimo-nos pela mandíbula.
– É preciso, parece, seguir levando a vida… Para que serve uma faixa de Miss Universo?!
Tudo o que Apolônio queria era preservar a calma e a higiene naquele quarto hospitalar. A mulher vermelha interveio:
– Você não é aquele que tem um coração nem a direita nem a esquerda? Ouvi conversa sobre a sua anatomia pelos corredores.
– E existe alguém com o coração bem a esquerda ou bem a direita?
– Não sei… o meu coração entreguei ao noivo… não o vejo desde que partiu.
– Ora, são duas as possibilidades, dois tipos de histórias para você e o seu noivo: aquelas nas quais nunca se sai de um lugar e as outras, onde não se chega a lugar nenhum.
– E os unicórnios? Não servem para nada?
– Os unicórnios? Não se domesticam… Trazem bom agouro, presságios mas recusam-se a obedecer.
– Subirei ao altar montada em um, sobre o couro da Rússia. Fique seguro disso!
– Vai se casar mesmo?
– Vou me casar, vou morrer, como dizem os livros. E o mundo existe para se chegar a um livro. Nada mais.
Ela esticou a bata branca e recolheu-se no diagnóstico. O seu noivado se firmara no espírito do tempo. Sem cura, sem possibilidade de perguntas. Rosto, mãos, calcanhares, pés exibiam vermelhidão homogênea e Apolônio supôs que aquela mulher retinha em si todos os sangramentos possíveis. Certamente, não levara o susto da primeira menstruação, não experimentara as duas condições de lagarta e borboleta.
Exaurido pelo esforço que fizera para abandonar a cadeira metálica e caminhar entre um e outro quarto, Apolônio prometeu à mulher vermelha que voltaria a visitá-la em breve. Desfez-se dela com um inevitável e elegante rancor de macho; onde estaria o tal noivo da divina concepção? Apolônio evitou perguntas, ao menos naquele primeiro encontro. Apesar da desconfiança, algo poderia ser exorcizado e cabia a ele tratar a doente com o respeito devido a quem experimentara séculos como fêmea e ainda assim não sangra.
De volta ao seu canto, Apolônio pensou em Lídia, Moncha Insurralde e, por fim, Messalina. Messalina protagonizara o livro sequencial “O Supermacho II” de sua autoria. Para alguns homens, as mulheres eram todas virgens, umas mais, outras um pouco menos, inclusive Messalina, capaz de vinte e cinco amantes em um dia, ela que conhecera os prazeres terrenos sem temer os tormentos no inferno. Este e aquele jogo paradoxal do hímen agradaram aos leitores de variadas origens e impulsionaram a venda de centenas de exemplares, algo sobre o que ele, herdeiro do legado de conceitos da mais alta vulgaridade e da patafísica, não fora informado. Sem acesso às notícias, o autor se preparava para dar o calote no hospital e fugir pela porta traseira tão logo se fortalecesse para o périplo. Antes, planejava uma vez mais visitar a mulher vermelha.
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Os do sanatório deram alta a Apolônio e a Senhora Laurita buscou-o das instalações embora ele não reconhecesse nela a grande investigadora da agência Morales y Morales. Apolônio oscilava entre o confusão mental e resquícios do passado. Seus passos vacilavam. Tinha consciência de que Laurita tomara as vezes da enfermeira durante a internação e, levantando suspeitas, conferira o seu pulso fraco, monitorara o tempo de diluição do antídoto injetado pela equipe de primeiros socorros no seu sangue. A nota médica não deixara dúvidas: envenenamento, de fonte imprecisa, possivelmente churros recheados de doce de leite, os churros de Saturno.
A velhota o guiou à pensão, cuja proprietária instalou Apolônio no antigo quarto, esvaziado dos seus pertences e lotado pelas malas de couro e cronoscópios do barítono desaparecido. Nem Laurita nem a dona da pensão demonstraram qualquer reação sobre as alternâncias entre Apolônio e Pietro Paolini na alcova. Que substituíssem um ao outro, pouco importava. Para elas, envenenamentos, sequestros e a fecundação de novos Messias faziam parte da rotina do povoado onde os cegos vendiam luz através de velas amarradas por barbante em nós cegos. Tampouco estranhavam a maciça chegada de membros da Sociedade Cirúrgica Russa para congressos e convenções pelos lados da hacienda do Professor Garcia e da francesa amiga do tzar. Não percebiam que o levedo com ergot que enriquecia os pães oferecidos a toda gente fustigava outras realidades e invertia os olhos para uma via láctea vista do interior do miolo. O que ambas consideravam inaceitável é que Apolônio segurasse um cachorro estrangeiro no triângulo formado pelo seu braço esquerdo e depois o depositasse sobre a colcha limpa da cama.
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O cãozinho Zamor farejava a rota das galochas como um Marco Polo nas paragens de Rulfo.
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Enquanto isso, na praça, os engraxates resguardavam-se pelo quadrilátero sem paredes como se protegidos pelas muralhas do universo. As estrelas grandes e pequenas não bastavam junto aos lampadários para iluminar o interior dos camarotes. Acendiam-se as velas dos ambulantes cegos para que os trabalhadores enxergassem os calçados e os espólios pilhados no chão dos camarotes (mapas obsoletos, pastas encadernadas com fechos de ferro, instrumentos arcaicos científicos, estranhos insetos vitrificados). Uma cratera com as cabeças emersas das musas localizava-se ao centro do K-4, o coreto silenciara.
Assim que se viu revigorado, Apolônio deixou o cãozinho Zamor na pensão e desperdiçou uns trocados do bolso para pagar um par de churros e o serviço do índio, noivo de Rosina, ávido em esfregar os sapatos emprestados ao barítono.
Apolônio reanimava-se com o antigo hábito de comer churros sem a consciência de que aquele teria sido um hábito seu. O doce de leite adocicava o paladar e a frustração por haver perdido o congresso de astronomia anterior ao coma. As mudanças germinavam em Apolônio como um broto de feijão acomodado num monte de algodão sobe ao céu. Pouco a pouco, Apolônio rejeitava os temores primitivos e acolhia o aspecto vermelho escuro da lua como se o nomeasse profeta. Apolônio II abençoava os peregrinos, anotava sermões com o Junta-Dentes e se convencera da necessidade da mulher vermelha para fazer par. Não contava com vindouro prejuízo em tratamentos dentais. Os dentes da parideira de Messias haviam apodrecido e a sua boca era o mais assombroso inferno de água que a mente de um homem pode imaginar. O sorriso da Virgem é uma ferida esquisita.
Um comentário sobre ldquo;Ofício terrestre, por Kátia Gerlach”