Dois quilombos centenários do Vale do Café – o Jongo do Quilombo São José e o Jongo de Pinheiral, comunidades localizadas no interior do Estado do Rio de Janeiro, se unem à nova geração de jongueiros do Morro da Serrinha, em Madureira; para lançar um álbum inteiramente dedicado ao gênero musical que está na matriz da música brasileira. O álbum Jongo do Vale do Café, que nasce para trazer visibilidade e perpetuar o jongo e a sua tradição, acaba de ser lançado nas plataformas digitais. E é a indicação musical da Philos para essa primavera:

Jongo do Vale do Café promete ser a obra definitiva sobre o jongo, reunindo 32 pontos centenários, oriundos das comunidades do Vale do Rio Paraíba, verdadeiras pérolas ancestrais que nunca haviam sido registradas em fonogramas.

Ao todo, mais de 40 cantores e percussionistas participaram do estúdio montado ao ar livre no meio da floresta, além dos dois tambores centenários e de tronco escavado como em Angola: o caxambu e o candongueiro. A direção artística, produção e pesquisa são assinadas por Marcos André em parceria com Thiago da Serrinha.

Essa obra vai iluminar o público em geral sobre as raízes e a origem do jongo, sua história, tradições e também dar visibilidade aos circuitos turísticos de suas comunidades que teimam em manter viva essa memória ancestral dos pretos-velhos dentro dos seus territórios e lutam pela sua sustentabilidade através da cultura tradicional e do turismo étnico que desperta muito interesse hoje no mundo.Marcos André

Álbum foi gravado no Quilombo São José

A realização do projeto e a pesquisa do repertório do disco Jongo do Vale do Café é fruto de um garimpo contínuo de quase 30 anos de dedicação de Marcos André, especialista em jongo, seus pontos e fundamentos misteriosos. Músico, pesquisador e diretor musical, ativista do patrimônio imaterial e muito apaixonado pelo jongo, aos 20 anos se tornou integrante como cantor e dançarino dos grupos da Serrinha e Vale do Café.

Marcos André e Mãe Tete do Quilombo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.
Marcos André e Mãe Tete do Quilombo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.

O disco foi gravado em uma semana num terreiro de terra batida na floresta do Quilombo São José, em Valença, lugar sagrado com mais de 200 anos de história, onde foram reunidos para uma imersão todos os mestres de duas comunidades centenárias da região, verdadeiros berços do jongo no Vale do Café e guardiões das suas raízes. Os grupos participantes incluem o Jongo de PinheiralQuilombo São José da Serra-ValençaVassouras, Arrozal, Barra do Piraí e Morro da Serrinha.

“O estúdio e o sistema de gravação foram montados numa floresta no alto do quilombo, utilizando técnicas de gravação de orquestra para trazer para dentro da casa do ouvinte a esfera mágica e energia de uma roda de jongo de dentro do quilombo”, explica Marcos André, exímio conhecedor da gênese e dos desdobramentos do jongo na música popular brasileira. Para tal feito, trazendo da maneira mais verossímil possível todo o simbolismo e a ancestralidade da comunidade para as faixas, foram instalados microfones aéreos, em buracos no chão (para captar o som dos tambores), e direcionais para captar as vozes dos mais de 40 cantores que gravaram os 32 pontos antigos de jongo preservados desde os duros tempos das senzalas.

Roda de Jongo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.

O engenheiro de som franco-brasileiro Philipe Ingrand, conhecido como “Doudou do Som”, cuidou por um ano de todos os detalhes técnicos da gravação e da mixagem de faixas como “Eu vim aqui para saravá”, “Casa de pau a pique tá cochilando”, “Morena quem te contou” e “Sereno cai”. A masterização foi realizada na Califórnia pelas mãos do renomado coreano Ken Lee Mastering. Marcos André conta ainda que há poucos registros fonográficos disponíveis atualmente, e estes apresentam um jongo modernizado, com a introdução de instrumentos musicais ocidentais de cordas e sopros e com arranjos modernos:

O novo álbum é fruto de uma maturidade de quase 30 anos de trabalho com o jongo e alcançou uma qualidade técnica de excelência internacional, poucas vezes proporcionadas às comunidades tradicionais. Vai apresentar pela primeira de uma forma ampla o jongo em sua raiz do Vale do Café, somente com vozes e tambores e com repertório de pontos centenários, da época do cativeiro, apresentando a rica poética e a melodia original do jongo, primitiva e fiel como na sua origem dos tempos das fazendas de café do Vale do Rio Paraíba.

No Terreiro, Grupo jongueiro, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.
No Terreiro, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.

O Jongo de Pinheiral é liderado por três Mestras irmãs: Fatinha, Meméia & Gracinha que, há mais de 40 anos, recolheram os pontos de jongo centenários dos pretos velhos já falecidos e criaram uma Escola de Jongo para repassar para as novas gerações essa tradição tão importante. Mestra Fatinha é uma das mais antigas e importantes jongueiras do Brasil.

Já os jongueiros do Quilombo São José descendem de dois casais de africanos trazidos de Angola no navio negreiro para o trabalho nas fazendas de café, onde ficaram praticamente isolados sem luz elétrica e comunicação até 2005. Vivem de agricultura em casas de adobe e telhado de sapê numa realidade rural muito similar à dos tempos do cativeiro. Os 300 moradores do quilombo são casados entre si e constituem uma só família. No álbum cantam as jongueiras da nova geração Gilmara, Luzia e Luciene. Ambas as comunidades possuem um Museu do Jongo e realizam eventos para visitantes e oficinas em escolas e centros culturais.

Roda de Jongo no Quilombo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.

Nascido no Rio, o jongo é ‘pai do samba’ carioca

O jongo é considerado o “pai do samba” carioca. Teve suas origens vindas de Angola para o Brasil-Colônia, com centenas escravizados trazidos para o trabalho forçado nas senzalas do Vale do Café, das margens do Rio Paraíba do Sul. Na região, se concentraram famílias negras que enfrentaram a escravidão e se tornaram grandes e talentosos artistas, criando gêneros musicais emblemáticos para a cultura nacional como o jongo, o calango, as folias, os terços, os pastoris, os cantos de trabalho e as ladainhas. Um caldeirão cultural de onde saíram matrizes fundamentais para o nascimento da MPB e, em especial, do jongo que deu origem ao samba. Um traçado dessa história é lembrado por Marcos André:

Muitos desses artistas e suas famílias não receberam suas terras com a suposta abolição e foram expulsos das fazendas. Com isso, desceram as serras das cidades do Vale do Café para a capital do Rio à procura de moradia e trabalho. Ao chegarem na cidade, sem ter onde morar, fundaram no alto dos morros as primeiras favelas: Providência, São Carlos, Mangueira, Salgueiro e Serrinha. Anos depois, esses mesmos mestres do jongo inventaram o samba junto com os baianos também recém-chegados e fundaram as primeiras Escolas de Samba do Brasil.

Tia Santa Sarapião no Quilombo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.
Tia Santa Sarapião no Quilombo, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.

Clementina de Jesus, vinda de Valença para o bairro de Oswaldo Cruz, e em seguida para o Morro da Mangueira, foi o maior e mais popular nome do jongo. Outras famílias resistiram e conseguiram permanecer no Vale do Café, onde criaram quilombos de resistências. Foram essas famílias que gravaram este Jongo do Vale do Café. As duas comunidades remanescentes do Quilombo São José e do Jongo de Pinheiral foram fundadas por volta de 1850 e apresentam só agora, por meio deste álbum, essa tradição na sua forma original.

Por esta enorme importância na formação da cultura brasileira, o jongo foi primeiro bem imaterial do estado do Rio a ser tombado como patrimônio histórico nacional pelo Iphan, em 2005, e é uma das maiores contribuições dos negros para a cultura do país. Chegou a hora do brasileiro ter acesso à raiz do jongo na sua origem do Vale do Rio Paraíba, berço do Jongo que para nós do samba se equivale ao que significou e contribuiu o Rio Mississipi para o nascimento do blues e do jazz.  Marcos André

Jongo do Vale do Café (2023)
Jongo do Vale do Café (2023)

O projeto conta com o patrocínio da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro via Secretaria Municipal de Cultura por meio do programa de fomento à cultura FOCA 2022 e da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura e Petrobras através do patrocínio a Escola de Patrimônio Imaterial do Estado do Rio. São parceiros do projeto os grupos Jongos de Pinheiral, Quilombo São José/Valença, Vassouras, Arrozal/Piraí, Barra do Piraí e Cia de Aruanda do Morro da Serrinha. a Rede de Jongo do Vale do Café, a Rede de Patrimônio Imaterial do estado do Rio, a Prefeitura de Pinheiral, o Instituto Floresta e Samba Jongo.

Realização, pesquisa e direção artística: Marcos André; Produção: Rede de Jongo do Vale do Café; Direção musical: Marcos André e Thiago da Serrinha; Engenheiro de som e gravação: Philippe Ingrand (Doudou do Som); Mixagem: Doudou do Som e Marcos André; Masterização: em maio de 2023 na Califórnia por Ken Lee Mastering; Vozes: Jongo de Pinheiral: Mestras Fatinha, Meméia e Gracinha, Cintian e Dede; Jongo do Quilombo São José: Mãe Tete, Seu Jorge, Pádua, Gilmara, Luzia, Luciene, Carmen, Jorgina, Santinha e Lucia Helena; Serrinha: Rodrigo Nunes, Marcos André, Pai Dário de Ossain,Thiago da Serrinha, Nina Rosa, Hamilton Fofão e Joyce Kelly; Tambores: Pádua, Jorjão, Anderson Vilmar, Thiago da Serrinha, Geovane, Valdeci, Vitor e João; Cavaquinho: Hamilton Fofão.
Altar do Terreiro, Jongo do Vale do Café (2023), foto de Daniel Lobo.
Publicado por:Philos

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