Rio de Janeiro e São Paulo são duas das cidades mais perigosas do mundo, e, para além da insegurança coletiva, existem pessoas que têm suas existências criminalizadas, seus corpos violentados, suas vozes abafadas apenas por existir no mundo da maneira “não tradicional”.
Todos nós conhecemos o tradicional, ele está estampado nas capas de revista, na propaganda de margarina, e reclama quando as propagandas apresentam uma família com duas mães, ou com dois pais, ou com um casal negro, ou um casal gordo, e tem um chilique quando vê na televisão uma mulher transexual. Se incomoda com qualquer vivência que não a sua, que “ameace” a sua existência no mundo.
A gente sabe que narrativa é essa.
A narrativa do homem cis, hétero, branco está saturada. Há quantos anos eles dominam o espaço da arte, da cultura, da política? Há quantas décadas eles ditam o que é estético, o que é bonito, o que é um comportamento aceitável, ou pior, moral?
Como expatriada, fiquei feliz ao ver o meu país – que nos últimos quatro anos teve seu prestígio internacional reduzido a migalhas – sendo representado por vozes não tradicionais. Vozes periféricas, do Morro do Dendê, de Bangu, de Osasco, de pele preta e parda, mulheres lésbicas, mulheres transexuais, homens gays, pessoas tradicionalmente marginalizadas, excluídas do debate político. Que delícia é ver o Brasil tendo vez no cenário artístico internacional através de outras narrativas, de outras histórias, de outras vivências. Vivências essas que são 54% da população que se identifica como negra ou parda.
É urgente que novas narrativas tenham espaço. Tudo é político! Trazer essas vozes socialmente marginalizadas – negras, periféricas, femininas, gays, transexuais – para a narrativa artística é por onde devemos começar a nossa revolução. Para além da representatividade, deixemos que essas pessoas ditem a narrativa, que elas conduzam a conversa a partir das suas vivências para além da sua resistência, da luta. Vamos deixar que elas sejam por inteiro, sem precisar de uma história triste que nos comova para terem destaque. Vamos deixar que as novas narrativas sejam conduzidas a partir de um lugar de respeito, interesse e amor.
A arte pode, deve [e eu acredito muito que pode ser] um lugar democrático, de afeto, de troca, de admiração. Podemos fazer política através da arte.
A exposição Paura na ERA Gallery em Milão fica em cartaz até 6 de abril, com uma curadoria sensível de Paulo Azeco. Viva a nova geração de artistas que cria com o coração na ponta dos dedos! Estamos com vocês.
Louise Ramas nasceu em São Paulo, é correspondente da Philos na Itália, escritora e Só dou Flores aos vivos que não têm pressa é o seu primeiro livro.