A preservação da memória e suas tradições tem sido fundamental para que as comunidades tradicionais de terreiros continuem resistindo, mesmo diante de um histórico tão adverso estabelecido pela escravidão africana e posteriormente pela política de apagamento da cultura afro-brasileira, que se perpetua até os dias de hoje nas mais diferentes formas. Nas casas de asé, aprende-se com os mais velhos os ensinamentos de uma sabedoria ancestral, que posteriormente são repassados da mesma forma para os mais novos. Desta maneira, mantêm-se vivas as memórias dos antepassados e atua-se na manutenção da identidade das comunidades afro-centradas. Por fazer parte de uma cultura que se mantém viva pela oralidade, as religiões de matriz africana possuem em seus códigos litúrgicos um conjunto de elementos em sua ritualística, formado principalmente pelos cânticos, musicalidade de seus instrumentos, coreografias, orikis, culinária e indumentárias. Estas últimas compostas por roupas de uso rotineiro nos terreiros, roupas para festas e ocasiões especiais e roupas de santo, cada qual com seus desenhos e funções definidas.

Fotografia de Alex Ferro para o catálogo “Moda de Terreiro”, com coordenação de Mãe Meninazinha de Oxum.

Em defesa do legado ancestral das religiões de matriz africana, Mãe Meninazinha  de Oxum e o Ilê Omulu Oxum, se mobilizaram, por décadas, para que peças sagradas das religiões de matriz africana apreendidas pela polícia, nas primeiras décadas do século XX, em ato de repressão e criminalização de seus adeptos, fossem devolvidas aos seus legítimos donos. Após longa negociação judicial e mobilização de lideranças afro-religiosas com a campanha Liberte o Nosso Sagrado, tendo à frente Mãe Meninazinha de Oxum, esse acervo foi transferido, definitivamente, para o Museu da República (RJ), em 21 de setembro de 2020, tornando-se um acervo de visitação pública e de referência à história e patrimônio de toda a população brasileira, da cultura afro-brasileira e da diáspora africana. Agora, temos a imensa alegria de anunciar o lançamento do catálogo Moda de Terreiro, no Museu da República, no Rio de Janeiro.

Mãe Meninazinha de Oxum pelas lentes de Alex Ferro para o catálogo “Moda de Terreiro”.

Para isso, o Ministro Silvio Almeida assinará convênio com o Museu da República, no Rio de Janeiro, e participará do lançamento do catálogo impresso Moda de Terreiro, coordenado por Mãe Meninazinha de Oxum. O acordo de cooperação técnica entre o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, a Defensoria Pública da União e o Museu da República permitirá ações de pesquisa e análise jurídica de um conjunto de inquéritos policiais relativos à apreensão de bens religiosos afro-brasileiros em terreiros de candomblé e umbanda, no Rio de Janeiro, entre 1890 e 1946, ampliando assim o conhecimento sobre a Coleção Nosso Sagrado, abrigada no Museu desde 2020. Na ocasião, o Ministro participará do lançamento do catálogo impresso Moda de Terreiro, com indumentárias sagradas e moda contemporânea com influência afro-brasileira. O catálogo tem patrocínio do Fundo de Investimento Social – ELAS, e apoio da UNFPA Brasil – Fundo de População das Nações Unidas.

Fotografia de Alex Ferro para o catálogo “Moda de Terreiro”, com coordenação de Mãe Meninazinha de Oxum.
Fotografia de Alex Ferro para o catálogo “Moda de Terreiro”, com coordenação de Mãe Meninazinha de Oxum.

O convênio tem como um dos objetivos ampliar o material de pesquisa da Coleção Nosso Sagrado – formada por 519 objetos sagrados de religiões de matriz africana que foram apreendidos neste período (1989 a 1946) pela polícia fluminense – que está desde 2020 sob a guarda do Museu da República, em uma Gestão Compartilhada com lideranças religiosas.

Mãe Nilce de Iansã, coordenadora do Ateliê Obirim Odara, conta que quando foi criado o projeto Moda de Terreiro buscou-se “ampliar o nosso campo de trabalho para além do estilo tradicional e religioso, desenvolvendo também a nossa marca para criações de roupas contemporâneas com influência afro-brasileira. Atualmente, temos peças exclusivas femininas, masculinas e infantis, além de adereços que podem ser utilizados em qualquer ocasião social”, diz.

Tradição Oral

As vestimentas religiosas de “Moda de Terreiro” seguem a tradição oral da Bahia trazida por Iyá Davina (1880-1964), mãe de santo e avó materna de Mãe Meninazinha de Oxum (18 de agosto de 1937), matriarca do Ilê Omolu Oxum. Composto por mulheres da região – costureiras, aderecistas, engomadeira, artesã – o Ateliê Obirim Odara fica dentro da casa de axé, e surgiu dentro do programa de combate à misoginia e à violência doméstica e familiar, do Ilê Omolu Oxum, que faz um trabalho de acolhimento das mulheres, também coordenado por Mãe Nilce de Iansã.

No catálogo “Moda de Terreiro”, os modelos são as próprias mães, filhas e filhos de santo do terreiro, começando pelos mais velhos, encabeçados pela matriarca Mãe Meninazinha de Oxum. Para Mãe Nilce de Iansã:

“Para se ter uma noção do quanto valorizamos o ofício da costura em nosso terreiro, até hoje preservamos a máquina de costura de Iyá Davina no Museu Memorial dedicado à sua memória. Muitas mulheres do nosso terreiro aprenderam a costurar naquela máquina, até mesmo minha mãe biológica, Mãe Dininha de Oxóssi, que ensinou muitas outras a manter a tradição destas roupas. Ela foi responsável pela criação do primeiro afoxé de mulheres do Rio de Janeiro, o Omon Xapanã, formado pelas meninas da família. O seu envolvimento com o universo do carnaval se estendeu para a Mangueira e os Filhos de Gandhi, onde pode colaborar com as suas criações. Ainda que o ofício de costura sempre fosse constante em nosso terreiro, apenas em 2013 conseguimos organizar esta atividade de forma institucionalizada, com a criação do Ateliê Obinrin Odara, quando fomos selecionadas como Ponto de Cultura”

Ela destaca que “a preservação da memória e suas tradições tem sido fundamental para que as comunidades tradicionais de terreiros continuem resistindo, mesmo diante de um histórico tão adverso estabelecido pela escravidão africana e posteriormente pela política de apagamento da cultura afro-brasileira, que se perpetua até os dias de hoje nas mais diferentes formas”.

Fotografia de Alex Ferro para o catálogo “Moda de Terreiro”, com coordenação de Mãe Meninazinha de Oxum.

Um conjunto de 519 objetos sagrados de religiões de matriz africana, apreendidos pela polícia fluminense entre 1889 e 1945 – principalmente nos anos 1920 – estavam sob a classificação de Coleção Magia Negra, sob tutela da Secretaria de Estado de Polícia Civil, depositados no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Em 1999, quando a sede desse Museu foi transferida para o prédio histórico do Dops, na Rua da Relação, 40, Centro do Rio, esses objetos sagrados foram guardados em caixas, com acesso extremamente restrito de pesquisadores e integrantes das comunidades tradicionais de terreiro.

Em 2017, foi iniciada pelo povo do axé a campanha Liberte Nosso Sagrado, encabeçada por Mãe Meninazinha de Oxum, do Ilê Omolu Oxum, para reivindicar a transferência deste acervo. Em 21 de setembro de 2020 este precioso acervo foi transferido para o Museu da República/Ibram.

Finalmente, em 19 de junho de 2021, em uma cerimônia no Ilê Omolu Oxum, uma dos terreiros mais tradicionais e respeitados do Brasil, e sede do Museu Memorial Iyá Davina – primeiro museu etnográfico do Rio de Janeiro dedicado às comunidades tradicionais de terreiro – foi assinado o termo de cessão definitiva deste acervo, que ganhou o nome de Coleção Nosso Sagrado.

Um primeiro conjunto de 126 peças foi tombado em 1938 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), constituindo o primeiro tombamento etnográfico do país inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

O Ilê Omolu Oxum

Fundado em 1968, por Mãe Meninazinha de Oxum, o Ilê Omolu Oxum – situado no bairro de São Mateus, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio – é tradicionalmente uma instituição voltada para a sua comunidade e de seu entorno. O Ilê Omolu Oxum tem forte atuação no campo dos Direitos Humanos, Assistência Social e Cultura, com projetos direcionados à população em situação de vulnerabilidade social, sobretudo as mulheres que são vítimas de racismo, sexismo e misoginia, chegando muitas vezes ao episódios de violência doméstica. Ao longo dos anos, o Ilê formou uma rede de trabalho e informações para o público que atende em seu território, assim como articulou parcerias com outras instituições da sociedade civil, integrando fóruns e comissões. O Ilê Omolu Oxum tem uma atuação pioneira no enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa, protagonizando movimentos e campanhas específicas, como “Liberte Nosso Sagrado”, que culminou com a transferência dos objetos sagrados apreendidos desde 1890 até 1946, em posse da Secretaria estadual de Polícia para o Museu da República, em uma gestão compartilhada com os povos de terreiros. Ainda assim, o Ilê continua enfrentando arduamente a intolerância religiosa na Baixada Fluminense, que tem tomado grandes dimensões, orquestradas por criminosos e fanáticos religiosos contrários à fé de matriz africana, colocando em risco não apenas o seu patrimônio cultural material e imaterial como suas mães, filhas e filhos de santo.


O evento ocorrerá no dia 20 de março de 2023, às 14h, no Museu da República, véspera do Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé e do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades

O que você achou dessa leitura?