A casa enorme, pintada a amarelo por fora, com as paredes em cor-de-rosa por dentro, paredes altas e imponentes, deixava crescer os olhos que lhe precisassem, era uma imposição ao respeito dos outros, pela vida nada contida na ostentação dos residentes. A sala estava preenchida quanto baste, os ricos não vêm televisão, mas tem sempre um, ou dois, ou três televisores de encher todas as medidas, a deixar as figuras e as coisas a tomar tamanhos reais e ocupassem os vazios de presença humana. Os ricos, os endinheirados como se costumam afirmar em tons de troça com uma espécie de pessoas que andam à sua volta no bairro, os “nativos, têm por hábito, o prazer da ausência, da indiferença, disfarçando o silêncio ensurdecedor das vozes com as falas de personagens da televisão, se não estão ao celular a falar alto às gargalhadas. Naquela casa também era assim, um televisor na sala de estar que enchia a parede e os olhos de quem vê, um sofá dando as reais medidas do espaço, um tapete com os pelos enormes e suaves onde deixava-se massagear os pés. Depois disso o silêncio.
Quatro pessoas viviam na casa, a Mulher, o Marido e as duas filhas.
Com uma vida abastada, a família tinha ainda escadas para descer ao mundo limitado dos pobrezinhos e uma generosidade que se espalhava por moradores do bairro até aos familiares mais distantes e de conveniência, o casal era um modelo do que devia representar uma união: companheirismo, lealdade e amor. Quando entravam pela casa dos familiares, nas festas onde eram contribuidores exímios e generosos, de mãos dadas e sorrisos no rosto, seus olhos brilhavam e refletiam nos seus lábios que pareciam sempre recém beijados. A Mulher transmitia uma ternura e tranquilidade que só se compara ao suave barulho das casuarinas. O Marido era mais extrovertido, seu corpo, sua voz, marcavam presença e faziam eco para que até os fetos em mulheres grávidas sentissem a sua alegria de viver e bem-estar. Os familiares, seus tios, tias, primos, primas, sobrinhos, e outros cuja designação facilmente se resumia num cordial e receptivo “mano”, vibravam ao seu lado e sentiam-se logo íntimos, com as caixas térmicas cheios de bebidas para alegrar a todos, cerveja bem gelada, vinhos de todas as cores e sabores, whiskeys com anos de velhice que embebedavam os ouvidos dos coitados convidados, de vida simples e sem luxo. O Marido era mesmo atencioso, conhecia os gostos de cada convidado aos convívios onde participava. E porque a nobreza que vive é enorme e inigualável, contava estórias e peripécias da sua vida com detalhes que ecoavam a sua voz como se estivesse num grande coliseu com uma ilustre plateia de intelectuais, gente viajada, experimentada de manjares de variedades exóticas. Os olhos dos convivas ficavam arregalados com a expressão do seu corpo que transmitia com exactidão a grandeza dos factos que relatava. Os rostos, a cabeça, a alma das pessoas a volta, pertenciam à narrativa longa e rocambolesca do Marido. A Mulher, era sempre chamada para certificar a veracidade de cada episódio. Sempre com um sorriso de deixar ainda mais extasiada a audiência, subia ao cume da montanha para ver o por do sol que o Marido via para o delírio da audiência. E as festas de família, eram assim, com o casal convidado, a prestigiar o anfitrião com a sua majestosa e gloriosa presença.
E sempre saiam exaustos dos encontros. A diversão não era um mero capricho da vida. Era uma tarefa para qual dedicavam o máximo das suas energias. Ou pelo menos todas as energias do Marido, porque a Mulher tinha sempre algumas reservas.
***
Já vai noite quando a filha mais velha soneca no sofá onde assistia a uma novela. A Filha Mais Nova, estava encostada ao canto numa poltrona, resolvendo um enigma num jogo no celular, quando a porta bate e o barulho do molho das chaves faz-se à estante. O Marido dá alguns passos para a sala de estar, senta-se no centro do sofá, mergulha a cabeça entre os braços e expira. Estica a coluna massageando-a sobre o encosto e mergulha os pés descalços no tapete macio. Deita-se de costas olhando para o teto onde um lustre com seis lâmpadas dá um brilho à sala. Suspira. Remexe os olhos como se acertasse o foco do seu olhar. Vê algumas teias a ligar cada uma das lâmpadas. Olha para os insectos que sobrevoam o espaço sem rumo nem pouso.
—Hoje há muitos mosquitos, não é!
Na cozinha a Mulher fala ao telefone, sempre concordando com quem está do outro lado. A filha mais velha mergulha no sono ao som das personagens da novela. Muda de posição para acomodar por completo o corpo no sofá. Seus pés tocam no corpo do pai ali esterilecido. Ambos seguem nos seus afazeres indiferentes.
—Não eram sete as lâmpadas neste lustre?
—O Pai já chegou?
—Há muito tempo!
—Caramba!
—O que é?
—O celular acabou a carga, justo agora!
—Temos que limpar o lustre! Uma das lâmpadas já não acende! Isto está assim a quanto tempo?
—Pai, pode emprestar-me seu celular?
A Mulher vem a passos soltos, mas firmes, para a sala. Olha para o Marido esticado com metade do corpo no sofá e outra parte ao longo do tapete, com os dedos das mãos entrecruzados sobre a sua barriga.
—O que fazes ainda aqui?
As crianças se levantam e vão para a cozinha. O Marido a quem é dirigida a pergunta, não responde, parece ausente, distante. Está ocupado com outras emergências. Continua olhando para o lustre como se lhe decifrasse os sentimentos. Neste momento não se sabe ao certo se é para o lustre, para a lâmpada que não acende, para os insectos ou para o teto amplo pitando a branco ou é para todo esse conjunto que ele observa, alheio àquelas presenças humanas.
A Mulher segue para o quarto onde volta a falar ao telefone. Agora mais interventiva no diálogo, quase sem dar tempo que ouve doutro lado.
—Não vou sair desta casa. Também é minha.
—Quem pensas que és, mostra-me teu extrato bancário dos últimos dois anos e saberemos quem és.
—Quem cuidou das obras, do desenho da casa. Cada tijolo, cada prego, cada ferro, sei em decore o que fez esta casa. Até os pedreiros todos sei os nomes e moradas. Se é para me ir embora levo comigo a casa.
A filha mais velha, sai da cozinha com um pacote de leite e cereais. A mais nova segura em dois pratos. Dirigem-se à mesa. Pousam os pratos. A mais velha mete os cereais nos dois pratos e de seguida o leite. A mais nova mete colheres. As duas começam a mordiscar os cereais em uníssono e viram a língua ao mesmo tempo para sugar gotas de leite que escorre pelos lábios até ao queixo.
—Já mandei tirar a tua roupa. Não tem mais nada. O que sobrar vou queimar, pessoalmente. Tudo se transformará em cinzas. Até tu, se te manteres aqui.
—Do pó viemos e ao pó retornaremos. Vamos é ver quem nos mete ao fogo.
Nos últimos meses tem sido este o tom das conversas entre o casal. Não tarda irão primeiro as filhas aos quartos dormir. De seguida irá a Mulher. E depois o Marido. De propósito o Marido deitar-se-á na mesma cama que a Mulher. A Mulher não fingirá que não o vê e que não o sente. Afastar-se-á e colocar-se-á ao limite da extremidade da cama. O Marido fará o mesmo, dando-lhe as costas. Mas esta será a última noite em que terão de confrontar-se desta maneira na catedral da sua intimidade e amor que se transformou num território de guerra.
Pela madrugada a Mulher desperta. Vai para o quarto das filhas que dormem o profundo sono da infância e adolescência cansativas. Carrega na mais nova e levanta a mais velha para caminhar com os próprios pés. Segue em direção à porta onde quatro pessoas esperavam. Olharam-se nos olhos e deram-se sinais de concordância. Seja lá o que fosse que se tratava tinha de ser.
Os quatro, três homens e uma mulher, a única com uma pistola na mão e os outros com tubos de aço, invadiram o quarto do casal e como se tocassem numa orquestra, lançaram-se em harmonia para o corpo do Marido. Ele despertou de imediato aos gritos, mas mal conseguiu pôr-se em pé ou simular alguma reação. Como se dançasse a última marrabenta, levando as mãos à cabeça e à cintura, rebolando, rodando o corpo sobre si e gritando, ia recebendo as pancadas em todo o corpo. E ele gritava, vociferava até que uma das pancadas com o ferro atingiu-o na boca em cheio. De imediato teve de transportar o grito ensurdecedor para dentro, chamou pelo pai, chamou pela mãe até que gritou apenas por socorro. A sua voz parecia sufocar-se por dentro do corpo que se diluía entre os lençóis da cama king.
—E a última coisa de que me lembro foi a mulher a apontar-me com a arma a dizer morre seu cabrão e deixa a nossa irmã em paz – Explicou ele à polícia três dias depois de despertar do coma.
—Então você acha que foram irmãos da sua esposa que te fizeram isto?
—Sim, chefe!
—Assim, desse jeito, como se matassem uma cobra?
—Não, como se me matassem a mim!
—E você, um homem, não fez nada!
Eduardo Quive é escritor, jornalista e programador cultural, baseado na Matola, Moçambique. Tem dois livros de poesia publicados, o mais recente “Para onde foram os vivos” (2022). Co-organizou três livros, duas colecções de contos e crónicas reunindo cerca de 30 autores moçambicanos e um livro de entrevistas com 25 escritores dos países de língua portuguesa sobre a vivência com a Covid-19. Fundou a revista literária LITERATAS que esteve activa por mais de 10 anos e o movimento literário Kuphaluxa. Desde 2015 que é curador e programador de eventos literários. É co-fundador da plataforma de promoção de autores moçambicanos e projectos literários CATALOGUS. Partilha sua intimidade com pessoas de toda a parte através do seu site eduardoquive.com