Na 15° Festa Literária Internacional de Paraty entrevistamos um dos símbolos da literatura negra e feminina contemporânea no Brasil, a escritora Conceição Evaristo. A autora nos contou sobre o papel social da literatura, democratização do conhecimento e coletividade. Além de nos revelar com exclusividade o título de seus próximos livros. Sem mais delongas, leia na íntegra a entrevista de nosso correspondente, Thassio Ferreira com Conceição Evaristo.
Essa Flip está sendo muito marcada pela presença das mulheres e também dos negros, tanto como convidados, como pelo escritor homenageado que é o Lima Barreto. Qual seria o desejo da senhora para a próxima Flip? Qual é a cara que a senhora gostaria que a próxima Flip tivesse? Para mim a próxima Flip, ela tem que aprofundar. Por que eu acho que a Joselia [Aguiar] deu um passo fabuloso. A curadoria de agora feita por uma mulher deu um passo no sentido de democratizar essa Flip. Para mim foi uma marca bastante importante, inclusive o fato das publicações e conferências poderem ser assistidas pela internet. Então isso foi muito bom, porque ele é um evento [a Flip] caro, um evento que criava uma certa dificuldade para participação. O fato de hoje ser pela internet, as pessoas que não puderem vir terão acesso.
E acredito que pode ir aumentando a participação dessa autoria negra, tanto brasileira quanto africana, ou de algum outro lugar. Como também incluir essa autoria indígena, que é uma autoria que está cada vez mais se afirmando na literatura brasileira. Mas eu acho que essa curadoria de agora foi muito corajosa, eu acho que ela deu um passo radical, eu diria que radical mesmo, e muito rápido. Do ano passado para cá, foi de uma diferença muito substanciosa. Então eu acredito que as próximas edições vão ser ampliadas.
Hoje também há uma representação de grupos minorizados, como os homoafetivos que têm uma literatura muito forte. Aliás, tem uma escritora, a Natália [Polesso], que eu fiz parte do Prêmio Jabuti, eu fui uma das [pessoas] que li o texto dela… fui uma das juradas. E votei em um livro dela que eu gostei muito, muito mesmo, um livro com muita competência, que traz com muita dignidade uma narrativa homoafetiva. Eu acho que cada vez mais esses festivais literários vão aprofundar essa democratização.
A senhora comentou justamente que agora a gente tem lido mais autores negros, inclusive africanos, mas eu particularmente tenho uma percepção de que a gente ainda lê menos os autores negros do que outros autores africanos brancos, como [José Eduardo] Agualusa e Mia Couto – que são muito bons -, mas o Ondjaki, por exemplo, nós lemos menos. Mesmo dentro do Brasil, o Cuti é um escritor não tão conhecido. Que autores negros a senhora recomendaria que o público lesse ainda mais? Para começarmos a ler cada vez mais literatura negra? Eu recomendo a Geni Guimarães, de São Paulo, o Cuti que você acabou de falar nele. Eu acho que o Cuti é um escritor que brevemente deve ser convidado. Precisa ser convidado, quer dizer, isso é um desejo meu… Lívia Natália que está aqui também lançando um livro de poemas dela.
a minha escrita é profundamente marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira
A senhora escreve mais prosa ou mais poesia? Eu acho que mais prosa, pelo menos tenho publicado mais prosa. Enquanto eu tenho dois romances e dois livros de contos já publicados, eu só tenho um livro de poemas.
Mas e os guardados? A senhora tem escrito mais prosa ou poesia? Guardados eu tenho mais prosa. Mas na minha adolescência, na minha juventude, nos primeiros anos que eu cheguei no Rio de Janeiro, eu tenho muita poesia escrita que eu não mexi mais. Houve um momento em que eu escrevi mais poesia.
E hoje o que a senhora lê mais? Mais prosa, poesia ou não-ficção? Não, é ficção! Hoje eu diria que eu leio tanto prosa quanto poesia. Principalmente de uma geração de escritoras e escritores negros que estão aí, e que me têm como referência, que me dão livros e me pedem para ler. Às vezes pedem para eu prefaciar, então hoje eu tenho lido tanto prosa como poesia.
Especialmente esses autores que a senhora citou? Nesse momento estou lendo a Lívia Natália, ela reeditou agora um livro de poesia. E tem um dos livros dela que eu faço a introdução. A Elizandra Souza, uma menina de São Paulo, a Ana Cruz do Rio de Janeiro, a Lia Vieira também do Rio de Janeiro. Alan Rosa da Conceição é um “texto” que me dá um prazer imenso de leitura. O Alan traz uma linguagem muito marcada, muito urbana de São Paulo num linguajar da periferia extremamente poético. Ele escreveu um texto sobre um dos livros meus e eu gostei tanto que pedi para esse texto ser incorporado como prefácio desse meu último livro.
A senhora comentou dessa prosa do Alan que vem da periferia. Eu vou estar numa mesa hoje à tarde sobre leitura e comunidade. Qual o impacto que essa vivência em espaços marginalizados – seja em favelas, em periferias, em comunidades indígenas marginalizadas – tem na sua literatura e na literatura de uma maneira geral? Essa vivência se torna tema, enquanto experiência que traduz a minha vivência pessoal, ou em experiência que traduz a vida de uma coletividade. Em pensar em termos de coletividade, a minha escrita é profundamente marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Ela é marcada de maneira inconsciente e é marcada de maneira consciente.
Conscientemente eu quero criar textos, quero criar uma ficção que nasça dessa experiência, dessa minha vivência. É o que eu vejo, por exemplo, de autores que eu conheço da periferia, como o próprio Alan Rosa da Conceição, o Sacolinha, de São Paulo; a própria Elizandra que eu acabei de falar nela. A gente percebe que essa criação é profundamente marcada pela vivência dessas pessoas, desses autores. Há um movimento que eu diria consciente de trazer essas experiências para a literatura, até para confrontar com a “outra literatura” que nos exclui. Quando a gente pensa na literatura indígena, que eu conheço pouco, de perto eu só conheço mesmo o Daniel Mundukuru, você vê que existe ali, existe na nossa criação, uma busca por espaço simbólico. É um embate simbólico que a gente tem enquanto sujeito, que temos outras experiências, que temos outras manifestações culturais, que temos outras maneiras de se postar no mundo, e que essas experiências não são levadas em consideração, ou quando são levadas, o são de maneiras folclóricas, perdendo todo o dinamismo que a gente tem no nosso dia-a-dia. Essas experiências não são consideradas, inclusive, como “material nobre” para se fazer literatura. E a gente faz justamente isso, a partir do nosso lugar de pertencimento, a partir do nosso lugar de gênero, no caso das mulheres e da literatura criada por pessoas trans, de nossa experiência social como sujeitos pobres dentro dessa nação, essas experiências são materiais que a gente traz para o nosso fazer literário. E eu me lembro muito de um poeta do Rio de Janeiro, [Éle] Semog, que ele fala mais ou menos isso: “É difícil criar uma rima com Carandiru”. E eu acho que dá para gente entender o que estamos falando… Escrever sobre o Carandiru é difícil, agora escrever sobre “eu tomei um whisky que chegou engarrafado de não sei quantos anos” é muito mais fácil. Você não está lidando com a dor, a gente lida com a dor o tempo todo. A gente lida com a busca de local de pertencimento, essa luta de nos apropriarmos da leitura e da escrita e do fazer literário como algo de nossa pertença. Por que a literatura só pode ser considerada e só pode ser feita se ela nascer do macho branco?
Heterossexual e cis gênero. Existe uma reafirmação dupla do direito de fala de outros grupos e da validade da experiência desses grupos na literatura. Isso. E toda vez que grupos minorizados pelo poder partem para a busca do direito de fala, do direito de representatividade, há uma tendência de não acreditar na validade desses objetos. Se a gente for pensar, por exemplo, na história do samba. O samba quando nasceu era coisa de preto, era quase criminoso! A própria história da capoeira…. Desvalorizar essas nossas experiências enquanto produtos, nos desvalorizar enquanto sujeitos criativos é uma maneira também de criminalizar as nossas produções.
Por que a literatura só pode ser considerada e só pode ser feita se ela nascer do macho branco?
A gente assistiu ao longo da história da literatura brasileira casos de embranquecimento seja de autores negros, seja de personagens negros para que eles pudessem ser “melhor aceitos” pelo circuito literário. Vimos isso com Machado de Assis, com o Lima Barreto… Ou as pessoas não se identificavam como negras ou elas embranqueciam personagens para que eles tivessem maior projeção literária. Como a senhora vê isso hoje? A senhora acha que melhorou, a senhora ainda enxerga isso acontecendo? Como a senhora analisa esse tipo de situação nos dias de hoje? Olha, eu não sei se melhorou. Mas pelo menos é muito mais discutido. Mas quando você vê por exemplo a novela Escrava Isaura, a gente vê que ela segue a mesma linha de quando o texto foi escrito. A Escrava Isaura era uma mestiça, mas era uma mestiça embranquecida. Quando a gente por exemplo, pensa em Gabriela Cravo e Canela, com todas as críticas que eu tenho ao texto, mas quando virou novela, vimos que a primeira atriz – que foi a Sônia Braga -, disse que teve que fazer escurecimento na pele. E a segunda atriz, cujo nome eu esqueci [eu intervenho, em ajuda à memória de Conceição: Dira Paes, que é do Norte, já tem um biotipo mais próximo], isso,mas mesmo assim não seria ainda; se a gente fosse pensar em Gabriela Cravo e Canela, a gente pensaria em um personagem com tom de pele mais negro, mais escuro. A gente vê essas obras literárias sendo ainda apresentadas com esse embranquecimento, em termos de personagens.
Em termos de autoria nós temos o Machado de Assis que em estudos mais recentes é apontado como sujeito negro. Aliás, tem um livro muito interessante do professor Eduardo de Assis Duarte – que estava aqui agora mesmo – que é o Machado de Assis afrodescendente [escritos de caramujo]; que eu não sei nem como que a crítica recebeu esse estudo de Machado de Assis afrodescendente. Quando a gente pensa em Cruz de Souza, maior poeta simbolista brasileiro, que é um sujeito do meu tom de pele ou mais, que não dá para embranquecer esse tom de pele, nós vamos ter uma crítica literária que só trabalha com os poemas do Cruz e Souza onde ele utiliza exaustivamente a metáfora do branco. E o Cruz e Souza passa a ser chamado “o poeta perseguidor das formas brancas” o “poeta que nunca falou da escravidão”. Mas a crítica literária, por exemplo, não apresenta o texto dele “O emparedado”, que virou filme estrelado por dois atores negros, Norton Nascimento e Maria Ceiça. É um texto que não há sombra de dúvidas de um Cruz e Souza negro falando. Um poema dele, Núbia, que ele faz para uma noiva, a crítica literária não trabalha com esse texto. Então os textos em que o Cruz e Souza vai falar do cativeiro e da escravidão, a crítica literária não os apresenta. É uma maneira de embranquecer o sujeito através da forma literária dele.
Hoje eu acho que é mais discutido e há uma autoria negra que se afirma como negra. E tem um trabalho muito interessante desse professor [Eduardo de Assis Duarte] que é Literatura e Afrodescendência no Brasil, são três volumes em que ele mapeia essa autoria negra dentro da formação da literatura brasileira. Então hoje, como tem uma plêiade de escritoras e escritores negros que afirmam essa negritude através de suas falas e de seus textos, está mais discutido.
O que me impactou em termos de literatura de autores negros, não foi dentro da academia, foi na minha própria vivência dentro do movimento social.
Teve algum livro ou autor que tenha impactado a senhora, especialmente em sua formação, ou ao longo da sua vida? A minha formação literária é feita dentro de uma academia que trabalha com autores brancos. Às vezes traziam o Lima Barreto, mas en passant. O que me impactou em termos de literatura de autores negros, não foi dentro da academia, foi na minha própria vivência dentro do movimento social. Então um dos livros que me impactou dentro de movimento social, isso nos anos 60, foi quando eu li Quarto de despejo da Carolina Maria de Jesus. Foi a primeira autora negra que eu conheci. Depois foi se dando através de pesquisa própria. Quando eu entrei para o curso de graduação eu já tinha lido tudo ou quase tudo de Lima Barreto. Há muito que eu leio Lima Barreto. O movimento negro tem o Lima Barreto como um dos precursores da literatura negra brasileira. Luiz Gama, eu vou conhecê-lo dentro do movimento social, ele que é considerado o primeiro jornalista negro na história da imprensa brasileira. Eu vou descobrir a autoria africana de língua portuguesa também dentro do movimento social, o primeiro poeta africano que eu fui conhecer foi o Agostinho Neto, com os Poemas da liberdade. Então esses livros que me impactaram. A Geni Guimarães, leia dela Leite de peito e se não encontrar leia A cor da ternura, é o mesmo livro, mas com alguns contos que não aparecem no segundo. Esses autores que me impactam são autores que eu descobri não na minha formação literária acadêmica, mas sim fora.
Um bom título de livro é? O que você tem desejo de ler a partir do título.
Um verso de outro escritor que a senhora gostaria de ter escrito? Mahin amanhã, de Miriam Alves [Conceição preferiu citar um poema inteiro].
Quais são os próximos planos da senhora? Terminar os romances “Flores de mulungu” e “Canção para ninar menino grande”, terminar um livro de contos, que talvez se chame “Os silenciosos prantos dos homens”, e um livro de crítica, mas esse livro de crítica só está na minha cabeça.
Mas essa crítica se debruça sobre algum autor específico, algum período? O meu desejo é ler e escrever sobre textos de autoria de mulheres contemporâneas. Porque tem uma meninada – eu tenho 70 anos, eu posso te chamar de menino, entende?! – escritoras bem jovens que estão produzindo bastante. Eu fico lendo e fico com muita vontade por que eu sei que, se eu me debruçar sobre esses textos, e falar sobre esses textos também, para elas vai ser muito bom, um reconhecimento do trabalho delas.
E para a cena literária vai ser muito importante ter a sua visão, a voz da senhora falando sobre a produção de outras escritoras contemporâneas. É, eu quero muito fazer isso.
Um conselho aos jovens escritores? Especialmente os da periferia. Continuem escrevendo, produzam e não caiam na ilusão de pensar a literatura como forma de subsistência. Não pense que está escrevendo, que vai vender muitos livros e que vai ficar rico. Esse é um outro lado. No momento o essencial é escrever e ler outros. E ler! Porque a gente precisar entrar em contato também com outras pessoas, para que você possa dialogar o texto, que possam te inspirar. É ler e escrever.
Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946). Escritora brasileira, Mestre em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Fluminense. É militante do movimento negro, com grande participação e atividade em eventos relacionados a militância política-social. Estreou na literatura na década de 90 com obras publicadas na série Cadernos Negros, pelo grupo Quilombhoje.
Thássio Ferreira (Rio de Janeiro, 1982). É poeta e contista, autor do livro de poemas (DES)NU(DO) (Íbis Libris, 2016) e de contos publicados nas antologias Prêmio VIP de Literatura 2016 (A.R. Publisher, 2016) e “Entre Amigos” (Sinna, 2016). Recentemente, seu livro inédito de contos “Cartografias” foi um dos pré-selecionados ao Prêmio Sesc de Literatura 2017. Tem poemas e contos publicados em revistas diversas como Philos, Germina, Mallarmargens, Revista Semeadura e Avessa.
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