Estava eu sentado no corrimão do maior viaduto que encontrei, quase mergulhando de retinas e tudo nos faróis dos carros que passavam abaixo. O vento que resfriava a minha pele bêbada era o mesmo a atiçar o meu espírito à queda. Já que todos vão morrer um dia, não posso escolher a minha hora? Sim, desabar bem alto (refiro-me ao estado ébrio dos meus sentidos), cheio de anestesia no sangue e natureza aérea nos estímulos da carne: poros, arrepios, alívios, sobressaltos. Sentia o revoar dos meus cabelos à sinfonia úmida daquela fração de outono (chovera o dia todo), mas lá estava eu, equilibrando-me sob o céu mais estrelado que contemplei na vida. Uma lua brilhantíssima e deveras cheia, tanto quanto a minha gana pela morte. Fiquei umas duas horas assim: carros indo e vindo sob os meus pés indecisos, lua e estrelas sobre a cabeça do maluco que já angariava expectantes. Gente que me viu desafiando a altura, do viaduto e a minha, inclinando-me ao chão de propósito. Certamente se interessaram pela nova desgraça, mais um show de horrores ao vivo (por enquanto) a cores e, melhor, completamente de graça… vida é pagamento em nosso mundo? No íntimo, alimentava considerações involuntárias. Pontuais desconcertos que alcançam os homens ao encararem a morte de frente e próxima: as velhas dúvidas acerca do além que, ao mesmo tempo, atraíam-me e me apavoravam. Puxei a última quantidade da garrafa em punho, acho que portava uma cachaça popular da época, quase tão mortal quanto a descida… descida? Não, não. Descidas não trucidam enquanto não acham o tipo de fim que as endossa. No desgosto da cana brava, quase sem ardor de tanta, curvei-me à pista de um modo enfático. Não havia a plateia de quando ensaiei o meu objetivo. Acho que se cansou em decorrência da minha demora em praticá-lo. Bem, quem disse que morrer é fácil? Só se ela vier durante uma grande desconcentração da vítima. O meu ponto de equilíbrio rompeu-se, lentamente, quando me resolvi a largar a garrafa vazia. O vidro se espatifou com tamanha facilidade que, em sequência, pus-me ao igual destino. Caí de braços grudados ao tronco e pernas bem unidas, como se uma… Sorri e fechei os olhos. Não sei como, cargas d’água, mas de concreto (num súbito muito rápido) eu me meti num buraco da via asfaltada. Fiquei entalado num bueiro sem tampa, só com a cabeça do lado de fora, enquanto uma molhaceira pesava o meu corpo (da cintura para baixo), no subterrâneo destinado aos esgotos. Embora atravessando o álcool, a minha decisão pelo fim se misturou ao porquê de tanta ânsia escapista: ninguém sai desse mundo com vida, certo? O amor… essa loucura florida ardia-me num malmequer persistente. Ela, a minha quase esposa na cama com o maldito do meu melhor amigo! Enquanto os veículos cruzavam as minhas laterais, fincadas no bueiro, transbordavam em mim luzes e passagens barulhentas do vai e vem motorizado.
Mas ela e ele sem roupa rebatiam a minha consciência, apesar de bêbada, exata nas infelizes recordações. Aos poucos as imagens se perderam (eu foi eu?). Bem, quando dei por mim, era início de outro dia… achei-me enxuto, limpo, numa cama ampla. Meus sentidos se abriram devagar, por isso tateei o colchão macio sem notar que… estatelei-me no piso e, bem, acho que a pancada me despertou num súbito. Logo notei que estava num quarto de apartamento. Faltavam inúmeros discernimentos, mas, pela janela que dava de frente a outro prédio, absorvi a percepção do edifício. De hotel? Motel? Próprio? Alugado? De uma dama bondosa? Dalgum tarado ou tarada? Nada sabia além da minha localização, aproximadamente manifesta e, sobretudo, enigmática. Levantei-me, mirando de alto a baixo. Só aí entendi que vestia apenas uma cueca. Bem familiar, diga-se de passagem. O ambiente me assustava e atraía. Passei a admirar os móveis em excelente estado e a ordem absurda dos detalhes do cômodo onde me instalaram. Entre curioso e pasmo, atravessei a porta do quarto, que estava apenas encostada, e parti à análise das outras áreas à minha disposição. Tudo de bom gosto e limpíssimo. Como da época em que eu não bebia… Bebida! Sim, dei de cara com um barzinho repleto de conhaques e uísques de ponta. Sorri. Bebi. Sorri. Bebi. So… rri. Bee…bi. Apaguei. “Amor, acorda. ” Ouvi o chamado ascendente até revê-la. Nós nos beijamos. Senti dela algum receio, que logo se confirmou quando ela me pediu alguns minutos para conversar. De início, não entendi bulhufas do que a minha querida me propôs, mas concordei. Obtive a razão do apartamento desconhecido: uma permissão temporária de alguns amigos. Até hoje relaxamos. Namoramos. Juramos o bem um do outro. Durante a semana nos sobram poucas horas juntos, devido ao cotidiano atribulado. Eu sou escritor, por isso trabalho no aconchego do lar (não precisamos mais das cessões de residências alheias). Todavia, ao anoitecer, o ritual quase não falha. O dia seguinte é promissor para muitos. Mas, ao nosso relacionamento, sinceramente, não. Ela me acorrenta e se fecha no quarto das visitas. Eu nunca me recordo de nada, até a nova manhã nascer e ela me reeducar para a maldição. Bebo e escrevo. Mais bebo. Jogo fora tudo o que pratiquei no tempo solar. Entrego à minha alma gêmea a confusão dos meus neurônios, sempre recauchutados pelo amor: ele nos basta.


Elicio Santos (Brasil). Comecei a escrever na adolescência, a princípio somente poesia. Retornei com toda a força à seara literária em 2011. Fiz duas oficinas literárias e hoje sou estudante de Direito (curso o décimo semestre). Remeto colaborações periódicas à revista Capítulo Um. Tenho quatro livros publicados.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Pouco antes do quase novo fim, por Elicio Santos

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