Vejo do sofá minha mãe cuidando das flores. Adquiriu várias e, no espaço restrito da varanda, criou um verdadeiro jardim, com vasos contendo espécies diferentes, dispostos sobre uma mesa de madeira e vidro com duas prateleiras. Ela cuida das plantas e das flores logo de manhã, quando o sol ainda é fresco e projeta sua luz sobre elas. Rega e conversa com elas. Diz que alguém – não lembro quem – lhe afirmou ser importante conversar com as flores. Usa expressões do tipo: “essa está feliz”, “essa gosta de ficar aqui”, “essa não gosta de vento”. Vez ou outra me chama para dizer: “olha, galego, essa rosa está desabrochando”.
Na sua tarefa de cuidar do jardim, arte que certamente aprendeu com minha falecida avó e que também fazia parte das habilidades de tia Gilda, minha mãe se abaixa para levar um jarro daqui para lá, de lá para cá; limpa o chão com a vassoura; curva-se e se levanta; traz o regador; movimenta-se. Eu observo a cena do meu sofá, tomando o café que ela preparou antes que eu acordasse porque, claro, mãe não cuida só de plantas.
O problema é que Dona Gilza tem dores insuportáveis no nervo ciático, e abaixar-se do modo como faz não parece ser uma boa ideia para pessoas que sofrem desse mal. Eu poderia lhe dizer isso. Poderia lhe dizer que quando se ultrapassa os sessenta é preciso aquietar-se e que o corpo merece repouso. Poderia dizer que a medicina ocidental é unânime em afirmar que não se pode abaixar desse jeito, ou levantar peso desse jeito, sobretudo se o ciático te tortura diariamente. Talvez já o tenha mencionado em algum momento, mas não menciono mais.
É que algo de muito profundo emerge dessa cena, da insistência dela em cuidar das flores. Algo de um significado que minha inquieta cabeça quer, em vão, decodificar. Um mistério que transcende as explicações da ciência. Parece que minha mãe executa uma função cósmica. Viajado? Talvez. Talvez eu me deixe levar, nesses momentos, pela beleza da luz sobre as flores, ou pela brisa que vem do mar. Ou pelo verde oceano que murmura logo ali, em sua amplidão infinita, atrás do pequeno jardim.
Num gesto de aparência tão insignificante, minha mãe sustenta a vida na Terra. Vidas minúsculas, poderíamos dizer, mas Vida assim mesmo. Que motivo haveria para tratá-las com discriminação? Ela nutre, cuida, ama. É possível e muito provável que não perceba isso, que sua ação, segundo ela, se vincule ao motivo simples – e consciente – de que aprecia flores: assim como sua mãe antes dela, assim como sua irmã apreciava.
Não digo mais: “mãe, para com isso, suas costas não aguentam”. Que sei eu dos mistérios do universo? Como posso sopesar sua função universal de mãe com os supostos malefícios físicos que eventualmente decorram daquele abaixar e levantar constantes? Como se compara o bem que uma ação provoca no indivíduo que ama executá-la com o mal físico que é consequência desta mesma ação? Eu fico me perguntando se, caso tivesse tal autoridade, a proibisse de cuidar das plantas, o quanto isto não afetaria sua paz de espírito. O quanto eu não estaria, ao lhe querer bem, provocando-lhe um mal. Então me contenho e nada falo.
Em outras épocas, falaria. Em outras épocas, levantaria o estandarte da medicina e da ciência e, com toda a arrogância de quem detém o conhecimento primordial, entraria em conflito com ela, tentaria impor-lhe o padrão da lógica e da razão. Irritar-me-ia profundamente com sua negativa em obedecer-me. Envenenaria o ambiente e a paisagem com minha própria rigidez interior.
Agora me calo. Talvez cientistas e médicos da coluna nunca tenham tido mães que cuidassem de jardins. Não sei. Talvez não tenham podido observar essa cena diária e ensolarada, com todos os reflexos de luz e cores invadindo suas salas. Talvez não tenham escutado o silêncio e a harmonia de gestos simplórios e, ao mesmo tempo, tão cheios de significado. Ou talvez seja só eu mesmo que sinta essas coisas. Um filho que ama a mãe existente na própria mãe. E que, fascinado, se deixa hipnotizar pela vida e pelos que dela cuidam.
Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.
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