EBENÉZER. ATÉ AQUI NOS AJUDOU O SENHOR!
Lançar luz sobre a vida tem sido a missão do jovem Samuel de Saboia desde que despontou no cenário das artes internacionais. E a Philos conversou com o artista durante sua residência na Casa Bicho, no Rio de Janeiro, pouco antes de sua viagem de retorno à Europa. O ícone queer das artes desafia as construções normativas do mundo em que vivemos para falar de fé, espiritualidade, gênero, raça, diáspora e da força que suas pinceladas carregam.

Onze da manhã, eu entro no seu ateliê no Jardim Botânico e fico admirado com o que vejo. Para além de todos os pincéis espalhados e bisnagas de tintas, fico olhando os rabiscos em pedaços de papel que o artista desenhou. Olho fixamente para um dos quadros e ouço a voz dele chegando ao fundo: -Esse é da Duda [Beat] e aquele outro, o de trás, é da Bruna [Marquezine]. Tenho que entregar todos antes de voltar, e eu já vou na quinta-feira! [A entrevista aconteceu numa terça de primavera] -Eu tô sem tempo pra nada, não consigo nem parar pra beber água! [Risos]
“Então vai ser um sacrilégio se eu começar a tomar uma cerveja enquanto converso com você?”, pergunto. E ele me diz: “Jorge, chega de malte! Mas é isso, o artista que lute! Pode ficar com a sua cerveja quente, a minha é gelada. Nos tempos da faculdade pra mim era só Itaipava e [vinho] Carreteiro.”
Em Recife? Ali no Bar da Kelly?
“Sim, eu ia para o Cava, pra lá e para o Bar do Pinto. Eu nem estudava na Federal [UFPE], mas ia lá só pra beber no Cava. Eu fiz [faculdade] Guararapes, fiz arquitetura em Piedade. Fiz um ano e meio e depois saí. Eu cheguei lá com quinze anos, eu nem sabia o que estava acontecendo. Eu cheguei na faculdade, nunca tinha bebido, nunca tinha fumado maconha. Eu chamava professor e professora de tia e tio!”
“Eu também cheguei na faculdade pequenininha, super evangélica. Meus pais são super evangélicos até hoje”. E ele me questiona: -Sério? Os meus pais são pastores! Todos os dias, seis horas da noite era o momento de oração. Até hoje é o meu momento de oração. Boto o meu fone, começo a orar, durante a minha meditação. Depois, bateu as sete, eu já estou ouvindo um pouco de música instrumental.

É tudo sempre sobre religiosidade para você?
“É o meu local comum. Eu tenho mesmo uma relação com o Divino e é minha relação pessoal com Deus. Eu acordo e sou sempre grato por ter mais um dia nesse plano, pelas oportunidades que me são oferecidas, pela quantidade de pessoas que vieram antes de mim para que eu pudesse estar aqui e agora nesse lugar de crescimento. E eu sinto que essa minha relação com Deus me permite reconhecer muito essas coisas. De olhar e saber que tudo que eu tenho hoje em dia vem desse encontro de fé. Os lugares que eu transito, os lugares que eu habito são lugares que eu sempre sonhei em estar desde criança, que eu via já como realidade, mas dentro de um lugar que é a nossa cidade. Mesmo que na minha cabeça fossem coisas mais simples ou até mesmo mais imensuráveis, nada muito palpável -porque está dentro da nossa cabeça. Você é criativo, você sabe.”
Esse aspecto imensurável já era um discurso seu ali dentro da cidade, não era?
“Total! O que aconteceu comigo foi começar a sair nas ruas e reconhecer as cenas de Recife muito cedo.”
Samuel produz desde criança, na sua pré-adolescência já era possível encontrar sua assinatura pelas ruas da cidade. Temas como a vida urbana, o imaginário social, a diversidade e a questão da sua identidade preta marcam suas fases e produções até os dias de hoje.
“Eu era pirralho, com 13 anos já fazia coisas. Entre os 14 e os 15 anos eu já tinha pintado o Texas, que era um super bar na época. Eu estava ali na Terça do Vinil, no meu círculo de amizades… Só que eu acho que tudo acabou chegando num lugar de caos muito rápido. Eu demorei muito pra perceber isso. Acho que só depois de eu ter saído de lá, de ter exposto em Nova Iorque algumas vezes e de estar neste ambiente como artista anônimo fora do Brasil, é que eu fui entender que muito do que aconteceu comigo em Recife; as relações com as pessoas e o meu ver a cidade, eram relações pautadas no racismo, não somente estrutural, mas físico.”
Nós nascemos em Pernambuco, cujo mar foi porta de entrada para o tráfico de escravos entre a África e as Américas. E pergunto ao Samuel como foi crescer numa cidade como Recife, especialmente no Totó, que pela experiência de vida de cada um, já traz em si uma consciência de vida sobre séculos de escravidão e colonialismo.
“Eu demorei muito a entender que eu não era só um moleque que estava ali querendo ser artista e que a minha cabeça não batia muito com a cabeça das outras pessoas que pensavam ali. Só depois que eu pude ter um tempo fora, de maturação, de entender também o que aquela cidade era enquanto cidade, que eu entendi que tudo que aconteceu comigo em Recife, era mesmo derivatória do que era Recife, da violência da cidade. É uma cidade que até agora vive na base do sobrenome. Em Recife é necessário ter muitos sobrenomes para ser importante. Ninguém em Recife está preocupado com consciência social, se você está ali produzindo sua arte, sua performance ou sua intervenção urbana. O importante é saber de quem você é filho. E como estamos falando em diáspora, também é de quem você vai receber o nome ou a quem você pertence. Em Recife, se você nasce já com o “nome certo” e no “bairro certo”, a sua relação com a cidade é outra. Quando eu saí de Recife eu estava com 17 anos, eu saí bem no começo da minha vida. Eu estava no meu momento e a cidade também. Mas essa ideia colonial não mudou por lá.”

As dores e a morte são também temas recorrentes na obra de Saboia. Parece-me que ela chega como quem rouba, usurpa, tira de rota alguém prematuramente… Samuel tinha 20 anos quando expôs sua primeira mostra fora do Brasil – Beautiful Wounds na Ghost Gallery, em Nova York – a coleção que tratava da morte de seus amigos. Um dos quadros se chama Pedrinho não saia de casa hoje porque o teu anjo da guarda tá dormindo… Um pássaro chamado inocência foi atravessada pela perda do seu avô… E pergunto para ele se ainda podemos sair de casa ou se o anjo da guarda ainda está dormindo?
“Eu nunca tive uma criação ou experiências de vida pautadas em medo, apesar de Recife. O medo é uma pauta que tenta ser inseminada na nossa sociedade, o medo da morte, o medo de perder. Um dos meus atos contra o medo é de viver a política do celebrar. Celebro cada dia num estado de êxtase. Só que é um êxtase da celebração do comum, do normal. Tudo que eu faço na minha vida é parte dessa experiência de crescimento e nascimento. Uma parte da minha criação foi pautada na morte. Eu tenho 9 exposições até agora, duas foram no Brasil e eu tive em todas elas, pessoas que morreram enquanto eu produzia essas exposições. Então esse lugar da perda e da morte sempre foi comum. Lidar com a morte era próximo, até porque o bairro onde eu cresci não era o local mais seguro do mundo, tinha que lidar com uma pessoa morta na frente da padaria ou amanhecer e saber que morreu o filho da vizinha, que cresceu brincando comigo.”

É por isso que você retrata essa coisa mais espiritual em seus quadros? Com essas representações de quase aura?
“É que eu tenho algo em mim de fazer do espiritual algo físico. Não é nem uma regra, mas é uma coisa muito natural para mim. Eu imagino muito o natural como um ambiente real, onde eu transito diariamente. Eu não só cresci dentro da igreja, como cresci na igreja, literalmente. A pintura pra mim é uma oração. É uma conversa, são portais. Agora mesmo nesta sala [do ateliê] eu tenho trabalhado nesses portais. Mas todos os meus símbolos são espirituais, você vê pássaros, cabeças, sementes germinando, mariposas, borboletas, terceiros olhos… Eu tô sempre trazendo algumas máscaras para falar de fases e identidades. Eu me baseio na fase lunar, tem dias que eu estou completamente ativo e tem dias que eu vou sentar e ficar olhando as obras por um tempo. Mas tem dias que eu venho pra cá e fico chorando, fico sofrendo, botando música sem fazer nada. Mas esse não fazer nada é um lugar pra mim de muito prestígio. Porque acho que faz uns anos que eu não paro [Risos]. Eu sempre fico brincando e até falei com a Carla [Oliveira, diretora da Casa Bicho], que eu não sei o que é tirar férias. Até quando eu tento tirar um momento de descanso, a minha cabeça não deixa. É algo como: -Ah! dormiu oito horas, bicha? Então levanta e vem pra ativa novamente. A cada dia eu tento evitar mais o celular, o computador e o iPad. Mas eu sou ritualístico, eu acordo de manhã, eu faço meus chás, leio por duas horas antes de ligar o celular, sou bem metódico. Se eu não fizer isso, a partir do momento que pego no celular, eu sou engolido por outro mundo! No fim do dia, quando eu tô chegando em casa, eu me despeço do motorista e já vou desligando o celular. Porque enquanto você estiver online, vai ter demanda. Tem sempre um email para enviar, uma mensagem para responder, uma passagem para comprar…”
Passagens, embarques e desembarques são mesmo realidades muito cotidianas para Samuel. Nos últimos anos ele cruzou continentes diferentes para desenvolver seus trabalhos que integram arte, moda, fotografia, performance, vídeo e até música.
“É uma loucura, mas a forma como as coisas têm acontecido é pra mim muito belo. Eu sempre amei moda, é um lugar de amor e reconhecimento para mim, de livre expressão. E até falando isso de espiritualidade eu acho engraçado, porque os meus pais são pessoas completamente diferentes. Minha mãe fez teatro por uma vida, ela trabalhou muito tempo passando filmes na América Latina, ela viajava para mostras de filmes, ainda era tempo do VHS. Depois ela começou a fazer trabalho missionário, depois faculdade de teologia e então conheceu meu pai. O que é mais doido é que, depois de um tempo, cada um fez o seu rolê, minha mãe virou chefe de cozinha e meu pai trabalhou numa transportadora de cargas. Então do ambiente artístico minha mãe é a que chegou mais perto, com os filmes. Só que foi meio engraçado, que quando eu tinha 11 anos, nós fomos para um congresso da igreja -meus pais sempre foram pastores, eles sempre trabalhavam nas pastorais. E é um trabalho muito sério não somente na igreja, mas nas comunidades, principalmente aquelas em vulnerabilidade social. E eles sempre ajudaram muito. O mesmo carro que meu pai pegava para me levar na escola, era o carro que ele levava alguém às seis horas da manhã esfaqueado na rua para o [hospital] Otávio de Freitas. Então era meio que essa dinâmica. Mas pelo menos eles nunca criaram um escudo sobre as realidades para mim. E como eles eram muito espiritualistas, eu sempre tive lugar e abertura para saber, entender e estudar outras religiões. Eu achava incrível, mas também era muito fácil, na verdade eu acho muito fácil esse lugar das igrejas cristãs, evangélicas, de demonizar o outro. Então eu sempre discordei. Sempre que tem muita gente falando a mesma coisa, eu desconfio. Eu vou atrás das minhas referências.
Mas voltando… Isso da moda é muito louco. Eu estava nesse congresso e tinha um pastor chileno dizendo que naquela noite Deus iria levantar uma pessoa que lideraria moda e arte no mundo, toda uma coisa de filme, aquelas cenas que você vê e sorri. Você sabe que sempre tem um êxtase na fala dos pastores! E eu fiquei ouvindo isso dele e pensando: -Sou eu? E minha mãe ficava me olhando, meio chorando e meio rindo. Só que levou um tempo até que as coisas se naturalizassem para mim, o meu estilo de vida e minha produção. E aí corta pra eu em Los Angeles, criando uma exposição por lá e num período de seis semanas numa ponte aérea em São Paulo.”
Seus mais recentes trabalhos incluem campanhas para a Comme Des Garçons, Dior, Calvin Klein e Vogue. E pergunto para ele como é atuar em todos esses suportes de expressão em outras áreas da criação humana.
“Foi muito maluco! Um dia eu estou em LA e encontro o Kim Jones com uma amiga numa loja de discos. E eu o reconheci e fui direto: -Olha eu adoro seu trabalho, eu não tenho nada aqui, nem meu caderninho, mas eu desenhei isso pra você. Eram dois passarinhos que fiz de caneta num recibo que eu tinha da loja. E eu disse: -Você não faz nem ideia, mas a gente ainda vai trabalhar junto e você vai comprar um monte de quadros meus. E em breve eu vou fazer uma coleção para você. E eu fui embora e ele me chamou para fazer uma foto, disse que era pra lembrar quando essas coisas acontecessem. E eu saí todo: -Meu Deus isso aconteceu? O que eu estou fazendo, dando a doida de novo! Eu sempre meti a cara, a vergonha não é muito bem apresentada para pessoas como eu.”
Você foi vítima de uma série de comentários preconceituosos de humoristas e personalidades da mídia quando o seu nome despontou entre os artistas contemporâneos de grande prestígio… O que confirma esse incômodo de estruturas elitistas, racistas e cisnormativas ligadas às artes. Para você, como tem sido enfrentar esses discursos de ódio? E como você tem se sentido no meio em que atua?
“Parte da nossa missão nesta existência é tentar mudar as coisas. Mas a gente cresceu num ambiente, numa sociedade, onde já não existiam tantas aberturas para ser ouvido. E se você ainda tem vergonha de gritar, não vai. É necessário fazer um barulho extraordinário, você não pode negar aquilo que você tem, sua voz e sua vontade, está negando a si a única coisa que você pode fazer, que é esse urrar! A galera pode até me ignorar, mas fingir que não está ouvindo isso daqui, é impossível. Eu tô fazendo muito barulho! Você pode passar direto, mas aquilo ali fica, ressoa de alguma forma.”
É também sobre movimento, não é, Samuel? Seria o seu movimento contra-diaspórico esse ir e vir entre Los Angeles, Paris, Marrocos, Zurique, Brasil?
“Sim, eu estava nessa, voltando outra vez para São Paulo, montando minha exposição para Zurique. Era carnaval, antes da pandemia, e eu fui para a Suíça. Mas antes disso, ainda em São Paulo, o Rafael Pavarotti, que é um irmão, me ligou e pediu ajuda numa ligação que ele iria ter. Ele queria que eu participasse da chamada ali na meiota com ele. E de repente estávamos ligando para a Ronnie Newhouse, e que queria que o Rafael fizesse a próxima campanha da Dior. Eu entrei de cara fazendo a ponte de comunicação, e depois dirigindo modelos no set e até colocando música. Aí eles nos chamaram pra trabalhar, fomos para Londres e eles deram todas as campanhas pra gente fazer: Hermès, Zara, campanhas para revistas… E no final de setembro fizemos a Dior. E foi bizarro, eles alugaram um parque inteiro na cidade para fotografarmos num jardim. E eu ali toda dondoca, mandando no set, pedindo meu suquinho e muito tranquila. Trabalhando muito feliz. Ali eu estava mesmo sentindo a presença de Deus e falando: -Caramba, olha a volta! Eu sempre acreditei.”
Você sempre fala também em esperança. Que vem de espera: Esperar no futuro, no resultado das ações, esperar em Deus… Quais são suas esperanças hoje?
“Minhas esperanças continuam, elas são realidade. São sementes germinando e estão todas neste local de tempo mesmo. Agora eu tenho trabalhado de forma amistosa com o tempo. Eu não estou mais assustado com a passagem do tempo, com o tempo das coisas que eu tenho que fazer. Elas acontecem no tempo delas. Uma parte da minha realização é transformar meus heróis em amigos, a massa em poetas e artistas e começar a desenvolver os sonhos não somente como sonho (ele continua sonho), mas em paralelo ele se torna sonho em ambientes reais, de forma física, com todo mundo. Isso tudo tem acontecido de forma bela, rápida e sem parar. Eu já entendi que eu não paro mais, ou está muito longinho. Eu não sei, Jorge, se a gente vai ficar duas velhas caducas, tem tanta tecnologia… Acho que não. Mas uma hora eu tenho que parar e você também, ou não [Risos]. Mas se eu parar e perceber que o que eu fiz foi magnífico, eu ficarei feliz. Eu não fico mais orgulhoso, eu fico feliz, eu olho pro que faço e digo: -Valeu! Eu reconheço ali meu tempo, meu trabalho. E eu acho que tenho entrado agora num lugar de maturidade, de independência. Eu saí da minha antiga galeria, agora estou solo, e aí é muito louco se reconhecer depois como artista independente. Eu tenho agora equipes que cuidam da arte, do Samuel enquanto persona e até mesmo dentro das minhas experimentações com vídeo e música.”

Então você está a um passo de fazer a Cassiane versão inglês?
[Risos] Sim! Na verdade eu abri o show cantando Asa Branca com sintetizadores! Foi uma doideira, o povo tava todo mundo olhando assim, com cara estranha pra mim, e eu disse: -This is Dominguinhos! Mas isso me rende coisas maravilhosas, como estar com Sevdaliza na praia de Boa Viagem tomando caldinho! Tem sido engraçado. Tenho uns amigos doidos que eu consigo juntar num momento Jam Sessions em casa pra produzir. Eu fiz um show de músicas próprias, foi legal. Eu vi a galera chorando e não sabia se era energia ou ketamina [Risos].
E na era da arte do pós-internet, o que significa ser esse artista?
Eu não separo mais os ambientes. Eu acho muito retrógrado essa coisa de separar ambientes. Quando você pensa arte, música, moda, dentro desse quesito como eu utilizo, é como contar um mais um e vai dar um. Porque são só facetas de uma mesma linguagem, que eu vou adaptando, vendo esse maquinário e pensando como transformar tudo em arte. Agora aqui no Rio, minha amiga Lívia me chamou pra um projeto [e eu tenho que acabar essas duas telas antes de ir embora, ou seja, na quinta] e no meio disso tudo eu disse: -Vamos fazer uma coleção e vai debutar na Fashion Week em Milão, e eu fiz os tecidos essa semana. Eu tinha 70 metros de seda, e eu muito louco passei três dias acordado. Eu chego em casa, tomo um chá de mulungu pesadíssimo para dormir, mas não tem dado muito certo porque eu ainda passo umas três horas rolando na cama. Eu saio já cansado e quando eu deito na cama a energia volta. E eu tô dizendo isso pra contar que a gente cai nessas armadilhas achando que corpo é máquina. Nossos corpos sempre foram criativos. Mas temos que ter espaço pra fazer e exercer isso com qualidade.
Você passou a maior parte da sua quarentena na Suíça, como foi esse processo de estar por lá durante a pandemia? E o que te motivou a vir a ser novamente um artista independente?
“Eu saí da galeria depois da exposição em Zurique porque eu entendi os locais de trabalho da galeria em que eu não me sentia presente, não era minha linguagem. E eu já estava investigando por muito tempo um lugar para que meu corpo não fosse visto como objeto de arte, ainda mais para galerias. A arte racializada é muito ridícula. Pra mim o conceito de arte e de sociedade sempre foram criados no mesmo lugar, para determinar. E o corpo de arte, o corpo artístico ele sempre existiu, independente da forma, da cor, da identidade, mas hoje ele parece que tem que estar presente para suprir um debate. E o que não existe é o acesso. E esse acesso, foi cavado pela mão, de joelhos, em súplicas, através da palavra, da existência… E eu não vejo a galeria como um ambiente em que você precisa estar para fazer arte e para ser reconhecido como artista. Assim como não vejo a necessidade de um jornal ou de uma editora para que alguém escreva. Você deve concordar comigo.”
Sim, mais uma vez chegamos na palavra, ou melhor, no verbo, que é ligado à existência. E que palavra você me dá agora?
“Ascensão! Sem nenhuma paranóia, um local de liberdade corpórea e espiritual, um processo de liberação. O primeiro processo de libertação é o nascimento, a gente está recebendo uma lufada de ar dentro do corpo, expandindo o pulmão pela primeira vez, que estava tudo ali colado, juntinho. A criança está completamente nervosa, acabou de sair de um lugar quentinho para uma atmosfera de sala cirúrgica. Então o nascer te liberta, mas essa liberdade já começa num ambiente de dor. Só que a continuação da vida não necessita estar pautada em dor. Então todo lugar que é traumático, precisa ser restabelecido. E precisamos viver felizes, além dos limites. Que limites são esses? Eles não foram impostos por mim! Então não preciso vivê-los como regras. Não fui em quem disse. Se esse é o limite para um grupo de pessoas ou para uma pessoa, ela ou elas que lutem! Que se limitem, que vivam esse lugar, não eu. Eu tô de boas!”

Seria uma ode à escuridão, alegria, música e tristeza?
“A gente faz do jeito que faz. E uma coisa que a gente aprendeu em Recife é que se você não pode entrar pela porta da frente, você arrudeia. E aí tem também o local de perceber que é legal arrudiar, melhor que entrar pela porta da frente que tem muita gente e muitas câmeras. Melhor fazer as coisas bem quietinho, sendo feliz, sem ninguém saber, sem postar stories, sem avisar muito que anda fazendo coisas! Eu tô fazendo coisas e tô fazendo, então tá bom! Ninguém precisa saber. Mas sobre a ascensão eu quero fazê-la de maneira feliz, eu não tenho um DNA frio, nem conquistas e alegrias que eu não fique impressionado. Eu passei 23 anos da minha vida esperando as coisas acontecerem e agora eu tô muito feliz com elas acontecendo. Estou fazendo uma coisa colorida, minha obra é um local de celebração. Eu pinto imaginando orações diferentes, agradecendo a todos que tentaram se levantar e caíram, pois agora eu posso usar os seus corpos como escada para essa escalada na montanha. Esse local de criação foi pautado em muitos corpos no quesito físico, tem muito sangue na história da arte. Uma narrativa que vem da desova desses corpos. Quando o chão bebe sangue, as plantas nascem fortes, e você respeita esse solo. Então tem todo um batismo de carga e energia de todas essas pessoas que colocaram seus corpos à disposição da arte, não para servi-la, mas para fazê-la.”
São desses corpos os rostos que você pinta nas suas telas, então?
“Eu sempre vejo eles como protetores, como pessoas que têm algo pra me contar, são sempre seres, facetas. Tudo que eu pinto sou eu. Eu só precisava entender qual linguagem eu estava falando, e não era uma ascensão imperialista. É um momento de festejar os acontecimentos, festejar mais um capítulo. Tudo tem acontecido no tempo exato, tudo não estava programado, mas agora é o momento (essa conversa da gente, é mais um desses momentos). É um dever nosso celebrar essa vida e não pautar nada em limites e tristezas. Não é fácil não, mas até aqui nos ajudou o Senhor!”
