Se, nas senzalas, só se ouvissem as rádios senhoriais; se só lhes chegassem os canais de TV e jornais da Casa Grande, as Senzalas jamais seriam capazes de inventar Palmares. A cultura da Casa Grande não serve à Senzala porque tem valores senhoris e formas senhoris. Mesmo a grande cultura milenar deve ser reinterpretada do ponto de vista de onde estamos, e não de onde nos disseram que estava a cultura.
– Augusto Boal

A percepção das desigualdades raciais no Brasil ainda são difusas. Apesar dos irrefutáveis exemplos concretos, a questão segue invisibilizada por meio de mecanismos socioculturais e midiáticos que mascaram, minimizam e até negam a existência dessa desigualdade. Para ver, não basta olhar, é preciso prestar atenção, não se deter nas aparências. Buscar o que está por detrás da imagem. Sentir para além da superfície. Escutar para além das palavras ditas. Deixar o não-dito vir à tona. A estética, como campo de batalha estratégico, pode tanto ocultar quanto revelar. De dentro da Estética do Opressor é preciso criar condições para saltar em direção à Estética do Oprimido, com cores, sons, movimentos e percepções próprias. Construir o espelho onde seja possível ver a própria imagem.

Quisemos trilhar caminhos estéticos que nos levassem ao desvendar de olhos e percepções e à retirada de véus que mascaram a realidade. Jogamos luz em paradigmas de beleza, de pureza, de limpeza, de bondade, de inteligência, de moralidade e de justiça, que valorizam a influência branca europeia e descredibilizam e folclorizam a herança negra africana.

Em 2010 recebi o convite de Mouhamadou Diol, do grupo Kàddu Yaraax (Senegal), para participar do III Festival de Artes Negras, em Dakar, que teria uma seção especial para o Teatro do Oprimido. Para tanto, escrevi o musical Cor do Brasil, sobre desafios cotidianos enfrentados por nós brasileiros afrodescendentes. O espetáculo estreou no 20 de novembro de 2010, no Centro de Teatro do Oprimido, com direção de Claudia Simone, arranjos e direção musical de Roni Valk, coreografia de Charles Nelson, cenografia de Cachalote Mattos e figurino de Zitto Bedat. Em dezembro, o espetáculo participou do III Festival de Artes Negras e inaugurou uma nova era para o Teatro do Oprimido em relação às questões raciais. A partir de 2011, realizamos vários laboratórios teatrais para investigar mecanismos objetivos e subjetivos que provocam, mantém e proliferam a desigualdade racial nos diversos setores da sociedade brasileira. Garantimos espaço para dar visibilidade às armadilhas emocionais que fragmentam e confundem os e as afrodescendentes no reconhecimento de sua identidade. Queríamos perceber que impactos a dimensão subjetiva pode ter no front objetivo de luta contra o racismo e a desigualdade racial que gera abismos étnico-sociais e mantém privilégios e status baseados na injustiça. Queríamos investigar a interseção do racismo com outras opressões para entender a complexidade na qual nossa luta específica estava inserida.

Na primeira edição do laboratório, a convocatória foi aberta para todos e todas que se sentissem conectados com a questão racial. Tivemos também pessoas não-negras, que viviam relações inter-raciais ou que estavam inseridas em contextos profissionais específicos. Mesmo reconhecendo a riqueza do espaço misto para analisar diferentes perspectivas na discussão do racismo, sentíamos a profunda necessidade de estar entre iguais para abordar perspectivas que eram específicas de quem carregava a história do racismo no próprio corpo.

Fizemos novas edições do laboratório refletindo sobre a projeção da imagem de negros e negras nos meios de comunicação, analisando quando e em quais espaços se exagera essa presença e onde se invisibiliza essa existência.

Analisamos o caso do menino negro que foi acorrentado em um poste, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em 2014. As correntes simbólicas e as objetivas que são impostas à população afrodescendente cotidianamente. Na ocasião, ficamos impressionados que a palavra racismo não aparecia nas matérias sobre o fato, nem nas redes sociais era fácil encontrá-la de forma explícita. Não havia conexão óbvia entre o conceito de racismo e aquele ato de barbárie. O racismo como silêncio, como tabu, tema proibido, difícil de falar.

Mas como falar de racismo e de extermínio sem cair no fatalismo? Enquanto trabalhava dentro da sala de ensaio, o grupo era confrontado com mais um caso individual, mais uma chacina, mais um absurdo, mais uma injustiça. Fazer Teatro-Fórum e descobrir que as alternativas no teatro e na vida são escassas e improváveis é um exercício cotidiano de confrontar frustração. Ao mesmo tempo, a própria existência do grupo, ali na sala de ensaio, era a prova que havia alternativa. Enquanto existência e resistência, aquelas pessoas compunham o movimento próprio da transformação.

Cada integrante do grupo contribuiu com o desenvolvimento coletivo, compartilhando saber e experiência: música negra, ritmo negro, dança negra, cinema negro, fotografia negra e cenografia negra. Para construir uma estética negra, para o fórum negro, de um grupo composto por negras e negros que queria contar histórias de vida que eram histórias de muitas outras vidas.

Essa trajetória nos obrigou a investigar alternativas e construir estratégias tanto para a dramaturgia quanto para o enfrentamento do racismo. Esse caminho investigativo nos levou a espetáculos como Saco Preto e Suspeito com a abordagem combinada entre o extermínio subjetivo cotidiano, através da violação de direitos e o genocídio evidente executado pela mão armada do estado contra os mais necessitados de seu apoio e amparo. O Teatro-Fórum alimentou nossa esperança e no nosso ativismo.

Nas estatísticas, as mulheres negras são as que trabalham mais horas e as que estudam menos tempo. São elas que têm jornadas duplas, triplas, quádruplas de trabalho, e, apesar disso, são as que ganham menos, as que têm menos oportunidades e enfrentam mais obstáculos. As mulheres negras são as que têm que fazer o dobro do esforço para obter a metade do lucro. As mulheres negras são as que têm menos tempo para si mesmas.

Em novembro de 2015, no Rio de Janeiro, realizamos uma edição do Laboratório Anastácia exclusiva para mulheres negras, dentro da programação da 1ª edição do Multicidade – Festival Internacional de Mulheres nas Artes Cênicas. Desenvolvemos um percurso de pesquisa sobre a construção da imagem da mulher negra na sociedade brasileira. Revisitamos aspectos históricos e culturais que determinaram nossa socialização e influenciaram nossa autoimagem. A investigação deu origem aos espetáculos de Teatro-Fórum-Musical Consciência do Cabelo aos Pés e Nega ou Negra?. Assim nasceu o Coletivo Madalena-Anastácia, formado por mulheres negras dispostas a escrever um novo capítulo na história do Teatro do Oprimido e a seguir a construção do Teatro das Oprimidas, integrando a Rede Ma(g)dalena Internacional composta por grupos feministas da America Latina, Europa, África e Asia. No Rio de Janeiro, o Coletivo se aproximou de outros grupos de mulheres negras com atuação acadêmica, ativismo comunitário, e cultural em áreas como música, dança e cinema. Parcerias que garantiram intervenções em distintas áreas da cidade.

Nos reunir entre negros e negras para aprofundar nossa compreensão sobre o racismo e seus estratagemas de manutenção de privilégios, nos permitiu acessar espelhos coletivos que nos ajudaram a ver o que olhávamos. Pudemos nos expor com mais segurança, visitar nossos medos compreendendo seu processo de criação, de reprodução e de manutenção. Esse aprofundamento na subjetividade nos garantiu novas alianças e abriu outras possibilidades de atuação coletiva. Entretanto, como negros e negras, queremos que o racismo seja encarado como um problema complexo que afeta todos e todas e que a construção de uma sociedade desenvolvida exige e depende de sua superação. Como mulheres negras, estamos cientes que, como uma das camadas mais prejudicadas da sociedade, em que várias opressões se cruzam em interseções e se complementam em injustiças, não vamos resolver os desafios que nos afetam sozinhas. Também queremos que esses problemas sejam vistos como questões que impactam a sociedade, para as quais, vários grupos precisam atuar simultaneamente no sentido de sua superação. O espaço da especificidade é importante para aprofundar a compreensão tanto dos fundamentos quanto dos mecanismos de sustentação e reprodução de determinadas opressões. Esse espaço também garante fortalecimento pessoal e coletivo, e potencializa a criação de alianças entre grupos que enfrentam questões similares. Essas experiências são essenciais para a preparação de oprimidos e de oprimidas para o confronto com opressores.

Se racismo não é um problema de pretos e pretas e sim um problema da sociedade racista; se o machismo não é um problema das mulheres e sim um problema da sociedade machista, estamos convidadas a implementar uma caminhada comum reconhecendo e respeitando especificidades, para estabelecer estratégicas articuladas.

Criar esses espaços de dialogo e articulação com vistas à busca de alternativas para a superação dessas opressões é o objetivo do Circuito Teatro do Oprimido, financiado pela Petrobrás e realizado pelo Centro de Teatro do Oprimido, do qual o grupo Cor do Brasil e o Coletivo Madalena-Anastácia fazem parte, cujas atividades acontecem de 2018 até 2020.


Bárbara Santos (Rio de Janeiro, 1963). Socióloga formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É uma mulher negra com experiência internacional, somando 28 anos de experiência ininterrupta com o método do Teatro do Orpimido, tanto no Brasil como em outros 40 países dos cinco continentes. Trabalhou por duas décadas com Augusto Boal e foi também a primeira mulher negra a publicar um livro teórico sobre Teatro do Oprimido, que foi lançado em português, tanto no Brasil como em Portugal, e também em espanhol na Espanha, na Argentina e no Uruguai.
Além disso, Bárbara é diretora de KURINGA, espaço para o Teatro do Oprimido em Berlim, do grupo Madalena-Berlin e de Companhia Teatral Together Internactional – cooperação entre organizações de sete países.

Publicado por:Philos

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