ESCRITO NA ABÓBADA DO FIRMAMENTO DE COLERIDGE
um poema-correspondência de katia gerlach
1. Eu escrevi da abóbada em sol, caves em gelo do firmamento de Coleridge em Shangdu:
2. Glenda ergueu os olhos desde os pés ao céu índigo e perguntou a Júlio sobre os passageiros pressurizados naquela pílula volante, sendo o azul, a cor mais imperfeita das cores, uma cor vulgar que se diluía com facilidade. Uma cor de firmeza questionável. Glenda era uma mulher curiosa, interessava-se pela identidade dos voadores, os alimentos que consumiram antes do embarque, os anseios que os levavam aos seus destinos, a frequência com que conferiam o tempo de voo nos relógios pop, a distância e a velocidade que os conduzia por rios sagrados de ar.
3. Ninguém gostava de Glenda porque ela não sabia conter os ímpetos de investigar detalhes inúteis alheios à sua vida. Júlio tampouco gostava de Glenda. Dirigia ao seu lado e desprezava aquela conversa. Paris recebera Glenda sem dela gostar. Paris recebe muitas pessoas sem gostar, como no caso da Glenda. (Ela clamava pelo seu demônio-amante que pouco se importava com ela.)
4. Quem era a Glenda de Miami, afinal. Não qualificava como donzela da Abissínia, não vem que não tem.
5. Os traços de nuvem da aeronave apontada pelo dedo da Glenda desenhavam estradas e viadutos tão irrefutáveis quanto as estradas e viadutos que se desdobravam pelos pântanos aterrados. Estas rotas inóspitas não conectavam cidades ou povoados, estas rotas forçavam apenas que as pessoas se mantivessem na condução de veículos emissores, à guisa de rostos, sendo que os humanos rostos não eram visíveis por detrás dos painéis de vidro. Os relógios pop contabilizavam vinte e quatro horas de luz e escuridão com as mãos presas aos volantes e destinadas ao firmamento. Por enquanto, eram as vagas do radialista de Hialeah que os ludibriavam.
6. Coleridge prometeu um firmamento.
7. A promessa de um poeta deve ser aceita, sem duvidar das vagas. Interromper o vagar, o divagar. Irromper em jorro o próprio brio.
8. Glenda desafivelava o cinto de segurança. Clic. Heróica.
9. As mãos nos volantes enrijecem os braços e os ombros. Assim que se morre. A mão solta serve para esculpir o grão de arroz da China.
10. “Estamos mais próximos dos jacarés e das capivaras do que de Coleridge”, pensou um motorista na dianteira. O outro não ouvira falar de Samuel C.. A fumaça dos carburadores em ponto morto não chegava a inibir a fragrância de Havana.
11. Wislawa, no velho continente, versou que não vivemos mais em tempos românticos.
12. Os amantes de hoje são reles amadores, como Glenda.
13. Wislawa acendeu o cigarro enquanto contemplava os passantes (o quanto eram amadores!). Espiava o mundo pelo olho da janela de seu apartamento em Varsóvia. Acidentalmente deixou tombar a cinza na toalha de bordado polonês. Supunha haver posto o cinzeiro naquele canto para onde esticava o braço. Uma criança chorava na distância. Várias crianças começaram a chorar na distância, para desespero de Wislawa. Não, o cinzeiro não estava em canto algum. As crianças chorosas eram inconsoláveis. Wislawa precisou atirar as cinzas restantes do alto, ao vento. Os seus compatriotas não aprovariam o desleixo de Wislawa para com as coisas. Em um interrogatório potente, indagariam a ela o que planejava enterrar no firmamento.
14. Os corpos precisavam de menos agora. Já não importa o que Wislawa responderia aos seus inquisidores: ao dizer que o firmamento não é um cemitério só de elefantes; que se refugiam crianças em pranto, crianças sem pais ou mães, crianças sob a tutela de estranhos; ou a sua teoria da evolução humana: coração, apêndice, um dos rins, o ciso, todos supérfluos na era anti-romântica. É o pouco que se enterra no firmamento.
15. O radialista de Hialeah distribuiu em tom confessional um segredo de confidencialidade perdida, devastadora: entre o seco e o húmido estou a ver Cristo e Kubla Khan! Qual foi o horário amputado pelo radialista para fazer o anúncio catastrófico?
16. Em decorrência direta das declarações irresponsáveis do radialista, graves colisões automobilísticas se engavetaram. Ele aumentara o volume.
Kátia Bandeira de Mello-Gerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos.