estou escrevendo um livro.
você só tem cadernos. sujos. envoltos nesses trapos. rabiscos. notas que nunca serão nada. além de traços tortos e linhas quebradas.
você é quem não sabe de nada. desenho cada corpo que passa. como uma mancha sobre um traço. são anos vivendo na porta desse banco. três colchões: um sobre o outro. quatro paus que seguram dois plásticos duros. azul por baixo. durmo sob esse teto. azul. um céu eterno e cálido. branco por fora. só pra dizer: algo pacífico. eles pensam. mas de fato não ponho mais medo em ninguém. estou velho. duas calças de moletom. sem cueca. um pinto mole que já não incomoda como antes. mas ainda tenho sonhos. no frio ponho 4 cobertas. e roço sobro o chão duro o meu pau, mole.
sim, estou escrevendo um livro. antes que a igreja proibisse decidi escrever – um livro sobre as bordas. nele refaço os meus passos. há tanto que nos importa. ainda estou a pensar. mesmo velho. e sonho. lutas. golpes. sexo. está difícil. sim. hoje foi o último dia da sopa. pra quem não come. nem mora. antes da proibição do prefeito. da igreja. quer dizer. já não sei mais quem comanda o quê. as coisas mudaram. desde a época em que cheguei aqui. sem comer por um tempo longo.
agora era assim. com você vomitando no metrô. e logo depois a menina pequenina e muito branca. de cabelos vermelhos. dourados. era uma diaba que falava noutra língua e sentava sobre o seu vômito, sem nem mesmo notar. já não percebemos nada disso. talvez a proibição do prefeito. talvez as manchas dos meus cadernos. como se já não fossem mais corpos. o que víssemos. ou o que cremos ver. e parece que agora só o que cremos é. uma nova era. dizem. nos espera. ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
sim, repeti alto. dentro do metrô. ainda preciso dizer que ela era uma diaba de cabelos vermelhos. que falava noutra língua. era isso que ouvia na porta do banco ou da igreja. o diabo fala sempre noutra língua. dizem. ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
gritei. no meio do metrô. mas ninguém me ouviu. nem viu. já não percebemos nada disso. talvez a proibição do prefeito. talvez as manchas dos meus cadernos. como se já não fossem mais corpos. o que víssemos. ou o que cremos ver. e parece que agora só o que cremos é. uma nova era. dizem. nos espera. ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
e eu todo o tempo só enxergava essa sua cara. estava verde. nas mãos tinha apenas o jornalzinho do metrô enrolado. não sabia se aquilo era a sua espada. cortada. mole. capenga. como o meu pau. ou a perna que se foi. você bradava. forte. imperioso. de sua garganta, além disso, apenas um líquido marrom. talvez a sopa. do último dia. ou um resto de conhaque ruim. era uma quantidade muito grande de líquido. você estava sentado num dos bancos do metrô. ao seu lado não havia ninguém. antes que a diaba chegasse. eu estava num outro assento de frente para o seu. ao meu lado algumas pessoas. todos foram saindo enquanto você vomitava. só eu aguentei olhar nos seus olhos e sentir o odor tenebroso, enquanto você discursava. digo, vomitava. quase solenemente. sobre o seu próprio jorro. ao seu lado, na outra fileira, permaneceu um rapaz com fones no ouvido. não olhava pra você. nem ouvia as contorções do seu vômito. às vezes não ouvir ajuda a não ver. ou vice-versa. já não sei. já não percebemos nada disso. ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
eu vi até a cor dos seus olhos. a cor do seu vômito. a cor das suas entranhas. e pensei: só mesmo as pessoas muito íntimas veem o vômito umas das outras. naquele momento selamos a nossa amizade. esta. feita da latrina do mundo. de onde viemos. e ficamos. e ainda há tanto por fazer. e dizer. antes da proibição. digo, da publicação. do livro. da nova era. sim, há também um cansaço imemorial. as manchas. o amontoado de cadernos. sem sentido. sem corpo. e você me dizendo que isso nunca será. que sem corpo não há. as nossas mortes. as nossas mortes. e mesmo agora.
mas aqui só há morte. mesmo que digam. digo, ouvi dizer. que somos felizes. e fodemos. e somos. e temos. uma vida. um nome. um corpo. isso é só o que resta. antes da nova era. do céu cálido que vejo sob o teto de plástico azul da minha barraca.
quando a diaba sentou tudo parecia ficar diferente. a cor do metrô. do seu vômito. que agora, com os movimentos bruscos do trem e suas curvas inesperadas, ia traçando pequenos rios sobre o chão cor de nada. feito de uma fórmica velha. mais clara do que o conhaque barato do bar de bourgoin. ela fingia não ver. mas não encostou sequer um dedo do seu mínimo pé numa das trilhas abertas pelo líquido marrom. havia uma afinidade indelével entre a cor do seu cabelo e a do seu vomitado. como se fossem primos irmãos num mundo que já não aquele. a diaba apresentava-se nos nossos tempos em corpos inesperados. aquela coisa pequena, de cândida não tinha nada. sim, era preciso continuar prendendo esses forasteiros que aportam por aqui. até hoje me pergunto como entram. não falam língua nenhuma. são ainda mais sujos do que o que vimos anos na porta do banco. no banco do metrô. enquanto nós morremos eles não param de crescer. por isso chegam pequenos. multiplicando-se infinitamente. a nossa atenção deve ser redobrada. essa a razão de termos sido chamados para a reunião de domingo. e de tudo o que ouvimos juntos. dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
você insiste em não lembrar. porque continua ignorando o seu próprio discurso. digo, o vômito daquele dia mudou tudo. enquanto o seu corpo contorcia-se a força de sua voz multiplicava-se. os gestos pareciam mostrar que ambos estiveram sempre juntos. e que você também esqueceu disso. era o que eu precisava para voltar aos meus cadernos. às manchas sobre os traços. aos corpos que durante tanto tempo passaram por aqui. sem que eu pudesse dar um nome. ou roçar na corda vocal uma sílaba. algo que fizesse sentido e alguém por fim ouvisse. já não mais como as manchas dos meus cadernos. como se não fossem corpos. o que víssemos. ou o que cremos ver. e parece que agora só o que cremos é. uma nova era. dizem. nos espera. ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.
tratei de agarrá-la. a nova era. lambi o seu vômito.
tudo o que escrevo hoje é o que consegui engolir de você àquele dia no metrô. como se o seu líquido ralo. mas ainda assim viscoso. pudesse colar os pedaços que vim largando sobre esse quadrado de paus da minha barraca. e sobre o meu, mole. e que agora, assim colados, todos esses paus juntos, colocassem por fim de pé, mesmo que ainda tortas, as minhas manchas. fazendo uma espécie daquilo que chamam “sentido”. “letra”. do que ouvi dizer. do que digo. do que dizem. nos espera. do que ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê. uma nova era. o que cremos. passei por fim a crer.
passei por fim a crer. no vômito. digo, no discurso. escrevo pra ele. digo, pra você. que me deu isso. esse quadrado de papel. do tamanho da minha barraca. erguido com os nossos paus moles. e o que cremos. digo. dizem. nos espera. de tudo o que ouvi dos discursos. do prefeito. ou da igreja. já não sei mais quem comanda o quê.

Anna Kiffer (Rio de Janeiro, Brasil). Escritora, colunista na Revista Pessoa e professora associada da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. Organizadora do livro A Perda da de Si – cartas de A. Artaud e autora dos livros Tiráspola / Desaparecimentos (2017) [poesia], A punhalada [poesia], (7Letras, 2016, coleção Megamini), Antonin Artaud (EDUERJ, 2016), e das coletâneas Sobre o Corpo (7Letras, 2016), Expansões Contemporâneas – literatura e outras formas (UFMG, 2014), Experiência e Arte Contemporânea (Ed. Circuito, 2013), e Anacronismos (7Letras, 2012), além de artigos e ensaios.


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Publicado por:Philos

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