O grande pensador contemporâneo indígena Davi Kopenawa fala sobre um céu que está em situação de queda. Outro tão importante pensador indígena, Aílton Krenak, fala sobre como encontrar meios para adiar o fim do mundo. Ambos discutem nestes pensamentos sobre o contínuo processo de extinção dos povos originários e seus universos ancestrais.
Mas e quando o céu já foi derrubado, e o mundo já foi extinto, o que fazer?
Nos últimos anos é possível observar um grande movimento de artistas indígenas de diversos povos de diferentes culturas ocupando os espaços do circuito da arte contemporânea brasileira, e daqui do Brasil para as instituições de outros países. Este é um momento muito importante visto que nós indígenas sempre fomos relegados a estes territórios, visto que ao longo da construção da história da arte moderna e contemporânea artistas não indígenas se apropriaram de muitos dos elementos dos universos dos povos indígenas para o desenvolvimento de seus trabalhos, mas sempre com os indígenas deixados do lado de fora desta “festa”, no que eu chamo este processo de grilagem cultural, ou grilagem intelectual.
Apesar das muitas conquistas ainda pode-se observar que há muito o que fazer para atingir um nível de maturidade neste processo, e também há muito no que refletir de como este processo de inclusão deve ser conduzido para que situações vistas na história da colonização dos povos indígenas de nosso continente, em como se dá a negociação entre as muitas diferentes forças cos universos culturais dos povos indígenas, e as forças dos sistemas das instituições artísticas da sociedade contemporânea, para que não se repita o processo de “troca de territórios e bens naturais por espelhos e quinquilharias dos juruás – fog iamã” [os não indígenas]!

Arrisco começar este questionamento a partir da própria ideia de “Arte”. Sou indígena mestiço dos povos Guarani M’bya [por mãe] e Dofurêm Guaianá [por pai], e nos idiomas de ambos os povos não existe nem uma palavra que se traduza como arte. Tão pouco existe tanto no Nhandereko [modo de vida guarani] quanto no modo de vida Guaianá um conceito que defina o que é arte. Em ambas as culturas as manifestações artísticas estão intrinsicamente ligadas e fluem de forma natural na vida cotidiana da comunidade, desde tarefas ordinárias até nos rituais espirituais. Diante disto, como pensar em arte contemporânea pela perspectiva de um indígena? E como as instituições artísticas estão se mobilizando para flexibilizar seus sistemas com o propósito de receber a arte indígena de modo que respeite as suas próprias formas de manifestação? Até que ponto os museus, as academias estão dispostas a questionar suas formas já estabelecidas do fazer e pensar a arte, e das formas de expor e compartilhar conhecimentos, especialmente quando elementos conceituais da “arte” indígena se chocam com o que já está estabelecido por estas.
Considerar estas questões neste processo é fundamental, e isto fica ainda mais claro quando vejo o processo de desenvolvimento da arte moderna e contemporânea brasileira, especialmente o movimento Antropofágico, liderado pela pintora Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, como também ao testemunhar alguns acontecimentos recentes em instituições artísticas brasileiras, e contrastá-los com a forma de pensar e fazer dos povos dos quais sou parte. Posso citar como exemplo quando uma das maiores e mais importantes bienais do mundo realiza uma grande exposição de arte contemporânea indígena sobre um território ancestral de um povo indígena originário, e deixa este povo completamente de fora do evento. Um elemento importante da cultura Dofurêm Guaianá é que em nossa terra ninguém canta antes de um guaianá, e um guaianá nunca canta primeiro quando estiver no território de outro povo. Um princípio básico de respeito. Instituições de São Paulo promovem eventos de arte contemporânea indígena, convidam parentes indígenas de diversos povos de muitas diferentes regiões do território brasileiro… só se esquecem dos Guaianás, e também de todos os outros povos que habitam a cidade de São Paulo! Isso configura num ato de profundo desrespeito com nosso kénke [chefe], nossos anciãos, e nossos ancestrais que estão enterrados nos solos debaixo dos prédios destas instituições! Alerto aqui para o cuidado de que eu não seja maliciosamente mal interpretado, quando de forma alguma sou contra a participação de artistas indígenas de outras regiões em instituições que hoje ocupam o nosso território ancestral, a cidade de São Paulo. Pelo contrário, eu e o meu povo somos os primeiros a defender que isso aconteça cada vez mais. A questão é o deixar do lado de fora os que originalmente são da casa. E esta falta de cuidado, e de respeito, vem ocorrendo em diversas outras instituições locais.

Outra prática que pode ser observado são instituições que elegem um punhado de poucos artistas e curadores indígenas e dão a estes poucos o poder de estabelecer os critérios para inclusão e exclusão dos demais artistas indígenas deste processo, que também é tomada de território. Hoje a cidade de São Paulo é a que possui maior concentração de indígenas no território brasileiro, ocupada por diversos povos indígenas de culturas diferentes, como Guarani M’bya, Pankararu, Tupinambá entre tantos outros. Você dificilmente vai ouvir destes que algum dia receberam a visita de curadores das instituições locais com interesse em conhecer a produção de seus artistas. Mesmo que tenha acontecido, trata-se de um fato raro.
Também aproveito para denunciar a quantidade enorme de frases extremamente racistas que eu já escutei de muitos agentes culturais quanto a condição de uma pessoa ser indígena. Por suas falas fica claro que para esse grupo de pessoas a aparência e a localização geográfica são os elementos fundamentais que determinam se alguém é indígena ou não. Para nós guaranis, somos o que somos por conta do Tekoá; erroneamente traduzido como “tribo” ou “aldeia”; trata-se não só do território físico onde habita o nosso povo, mais de todos os elementos ancestrais, espirituais, culturais, a comida, a língua, as relações entre os parentes da comunidade, tudo o que há nesse lugar que me forma um Guarani M’bya. Isso é o mesmo quando se trata da cultura Guaianá. Para nós, o fenótipo é o que menos importa, ainda mais quando consideramos o processo de miscigenação pelo qual fomos submetidos como resultado de diversos programas de políticas públicas que visavam a extinção de nosso povo.

Outros exemplos de choques entre culturas: na sociedade contemporânea ocidental é comum separar a vida religiosa da vida secular. Em ambas culturas indígenas das quais sou parte é impossível separar as coisas do dia a dia da vida espiritual, até as coisas mais banais. Para nós, tudo está diretamente conectado sempre, em tudo. Tudo é espírito. As relações das sociedades ocidentais são baseadas em contratos sociais [constituições, leis, regulamentos, contratos, eleições, etc]. As sociedades indígenas são baseadas em laços familiares.
Estas muitas diferenças conceituais sobre vida, mundo, e arte, entre os povos indígenas e o modo ocidental dos juruás me fazem pensar se o que eu e outros artistas indígenas produzimos poderia ser chamada de “arte contemporânea”, ou se deveria chama-la de arte descontemporânea, transcontemporânea, acontemporânea, ou até mesmo se a busca por um termo específico realmente importa. Particularmente, com o propósito de estabelecer sobre a minha produção um encontro equilibrado entre minhas memórias afetivas de um homem urbano, e que até participou da construção deste lugar tendo atuado como pedreiro, e de um indígena em processo de reflorestamento do seu próprio território do pensamento, em busca de transmitir um significado mais apropriado sobre o que é esta produção, eu tenho realizado algumas adequações, como o que antes eu chamava de “performance” hoje eu reconheço como “ritual artístico”, as pinturas como “rituais sobre tela”, “ritual em vídeo” e assim por diante. Algumas de minhas exposições não tem curador[a], como uma forma de falar por mim mesmo, ou em alguns projetos o[a] curador[a] é um[a] também indígena, e isto porque neste caso a nossa relação transcende a camada do profissional para algo mais profundo, no lugar da conexão pela ancestralidade. Os termos da ficha técnica são alterados para termos da nossa língua originária, que trazem significados de nossa própria cultura sobre a atuação de cada um: o curador seria “karaí” quem tem o dom de transmitir conhecimentos e sabedoria pelas palavra; produtor e montador por “werá” quem tem a habilidade de manejar as ferramentas para construir mundos. Faz parte deste processo pensar também nas formas como esta produção será apresentada para o público. Os textos de minhas exposições são sempre traduzidos para alguma das línguas dos povos dos quais sou parte.
Em todo caso, o que eu e outros parentes indígenas artistas estamos apresentando não é melhor ou pior, não é mais ou menos digno, não é razão ou verdade maior, mas tratam-se apenas de outras perspectivas de se observar a vida, nosso mundo, e a própria arte.
E respondendo às questões desses nossos ilustres pensadores Davi Kopenawa e Ailton Krenak, quanto a nós do povo Dofurêm Guaianá, seguimos levantando este céu do chão, da terra!
