1. Neste adágio, conhecer a si, reconhecer-se nas fraturas do velho tempo, na substância do corpo em espanto do pleno esquecimento. Ele voyageur partiu e já não se lembra. Tornar-se morte sepultada na memória do outro.
2. A Dupla Chama: o amor como forma de vida, diz Paz. Fui ‘amors, amor purificado. O código do amor criado por poetas líricos e pássaros líricos. Não há animais mais líricos do que os pássaros: Simurgh, o voador de Attar de Nishapur.
3. Dê face ao poeta, ou dê a face ao poeta. Estender o outro lado da face à mão brutal do voyageur. Permitir a queda desejosa das pálpebras e olhar para dentro, sentir a respiração assustadora do outro.
4. Quem tem ao menos um pulmão, tem coração. Respirar o suficiente para não sucumbir, renovar graciosa esperança, gelar, usar perfume de rosa e camomila, acreditar em Simurgh.
5. No festival de vagalumes, o convite em papel de arroz para aproximar-se daquele viajante, em seguida, a pequena ousadia em lhe pedir um vagalume, ou um livro de versos. Ousar pedir um presente que se antecipa não ganhar.
6. Os vagalumes na escuridão acasalam-se em Shibuya. O festival se inicia na mansuetude noturna da floresta. Em sua melancólica angústia, o voyageur inspira pelas cavidades do nariz lampejos de luz até quase sufocar. O homem repercute como uma vaga solta no corpo distante, por onde passou le voyageur, sem amor algum, foi um voyeur, evaporou na tarde inerte, letárgica e não seria capaz de voar nas belas asas de Simurgh.
7. Franz K. trancou-se em seu quarto, o pai clamava com o soco dos dedos na porta para que visse com os próprios olhos as ruínas do tempo, como as criaturas humanas as recriavam em prenúncios de novas guerras. Frank K. mantinha-se trancado em meta-morfose, amorfo.
8. Encerrados em países amorfos e atômicos, estão as criaturas humanas e não saem aos passeios, os voyageurs não sabem para onde isso os levará, possivelmente outros corpos, outras manhãs, outras mortes, o fim do voyeur.
9. O que é de si, de qual substância são os seus órgãos, a sua pele, o que fez de si, Monsieur le Voyageur neste fluxo negro, sem reparos pelo pensamento, quantas feridas e dores e cortes na vaidade das viagens.
10. O voyeur, a ofuscar fantasma, vida, morte, alma, torrão da terra que se arrasta por sobre o ventre, centro do mundo, o homem acreditou que guardava o centro do mundo em segredo e fez como Franz, não saiu mais de casa. Temia que arrancassem de si tesouro e fortuna presentes e futuros que continha na sua carne. Era de carne, e ossos.
11. Curta fábula do romance alegórico: o homem mais frio do universo é de carne e ossos e frequenta o festival de vagalumes. Não há de haver espanto nisso. Não há. Ela abaixou o rosto para beijá-lo. Repetidas vezes, ela abaixou o rosto para os lábios do homem mais frio do universo em sono transiente, um transe, ela gostaria de provocar um espasmo como o de um vagalume livre da floresta.
12. O inseto liberado pelo cérebro em ócio zunia no ouvido do amante em meio a hora opressiva e um ardente fracasso. Ignorar a si e, esforçar-se para conhecer o seu deus. Ignore thyself, and strive to know thy God, Simurgh, o voador.
Kátia Bandeira de Mello-Gerlach (Rio de Janeiro, Brasil, 1980). Natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas. Publica no Jornal Rascunho. É curadora e membro do Conselho editorial permanente da Philos.
[1] Baseado nos poemas An Allegoric Romance e Know Thyself, de Samuel Coleridge.