Os homens constroem suas próprias prisões. Com palavras. Rotulam tudo: objetos, sensações, sentimentos. E depois o rótulo torna-se entidade, a partir da qual se deve agir de determinada maneira. Cria-se o respeito ao rótulo. Mais: sua divinização. Subitamente, há uma reviravolta. Não se trata mais do que são as coisas, mas do que as palavras dizem que as coisas são. E se as palavras dizem que uma coisa é assim, pobre do indivíduo que tenta escapar de seus limites, dos muros deste cárcere imaginário.
Fico impressionado com esses filósofos, quando se preocupam em bem definir tudo. Aristóteles na Ética, Locke no Ensaio, Hume no Tratado, Hobbes no Leviatã. Parecem precursores do dicionário. O intuito é claramente o de domar o mundo com a linguagem, o de dar conta de todas as coisas, atrelando a cada uma delas uma palavra, como se assim fosse possível compreender este mundo. E basta que alguém, em sua rebelde individualidade, fuja a alguma regra, aja de modo indefinido, para ser tratado de bárbaro, de estranho, ou de qualquer outro adjetivo que qualifique o desconhecido.
Nunca existiu “amor”. Os seres humanos inventaram o amor, como todo o resto. Fizeram um amálgama de diversos sentimentos e formas de agir e disseram: “eis o amor”. Não importa o peculiar, o detalhe, as diferentes formas de sentir. Se você acrescentar A + B + C = “amor”. Agora vá escapar disso! Porque criaram o amor, de repente há mulheres que te questionam sem cessar: “você me ama?”. E que, a depender de sua resposta, estão dispostas a te deixar, a te trair, etc. Elas anseiam pela palavra como se a palavra reconfortasse; anseiam mais pela palavra do que pelos gestos “amorosos” do amante. É a linguagem no domínio do mundo.
O rótulo como prisão. Alguém o insulta, te chamando de bandido. E a palavra desperta associações negativas, ideias de ações “criminosas”, ideias de “bem” e “mal”, ideias de comportamento, de aceitação social, ideias sobre a personalidade, sobre quem você é e sobre quem deveria ser, sobre seu papel na sociedade e sobre sua reputação. Ideias sobre honra, e como se deve reagir ante a “honra ferida”. Tudo isso, claro, num lapso de segundo, num circuito cerebral, na sinapse que te leva da palavra ao pensamento, do pensamento à sensação e, o pior, da sensação à ação, ao revide, à violência.
Aprisionados por palavras e seus sentidos internalizados. Rótulos como ídolos religiosos, cuja significação sagrada – até para os que se dizem orgulhosamente “ateus” – motivam ações violentas, reações baseadas em quimeras, construções sociais milenares. Diga a um “ateu” que ele é um “idiota” para você ver se sua reação não será a mesma que a de um “religioso fervoroso” chamado de “irracional”. Ambos serão despertados pelos seus ídolos, pelo significado místico das palavras, pelo engodo de que palavras representam realidades e que, portanto, merecem alguma resposta – também dada em palavras. E a guerra nasce daí. A violência está imbricada na gramática.
Fica claro, portanto, que a palavra é poderosa. E que, evidentemente, pode gerar também paz e bem-estar. Por que basta que mudemos o tom, que empreguemos palavras “boas”, para que as sinapses ocorram em sentido contrário, gerando sentimentos que estão associados, no cérebro e na experiência humana, a sensações positivas. Por isso o poder da prece (independente da existência de um Deus) e o reconforto de palavras amigas. O rótulo é o engodo de que se serve o homem, tanto para matar, destruir e provocar o caos, quanto para pacificar e harmonizar. A palavra é faca de dois gumes.
Mas insisto no engodo porque me parece que as pessoas não costumam perceber que o rótulo é, digamos, o gatilho que provoca, a depender das construções internas de cada um, sensações tão díspares. Um responde ao insulto com uma facada; o outro com um sorriso. Mesmo rótulo, reações diferentes. Prova de que alguns idolatram a palavra, mesmo quando afirmam não possuir ídolos ou não acreditar em deuses. Outros, cientes da ilusão, reconhecem a impossibilidade de se objetivar o mundo com signos e símbolos. Estes veem perfeitamente que a linguagem é construção humana, e só. E ao perceberem isso, nada mais endeusam – e se tornam, eles mesmos, deuses. A palavra como obstáculo à verdadeira compreensão do mundo.
Caio Lobo, pseudônimo de Bruno Mendonça (Recife, Brasil, 1979). No período de 1994-1998, viveu em Toulouse, na França. Em 2007 ingressou, por concurso público, nos quadros do Ministério Público da União, onde trabalha até hoje. Morou em Brasília do ano de sua posse no serviço público até o final de 2015. Na Capital Federal concluiu Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, vive em sua cidade natal. Escreve desde os dezesseis anos: sobretudo romances, ensaios e poemas. Introspectivo, durante muito tempo criava para si, engavetava ou só mostrava suas obras a amigos mais próximos. Em 2012, por incentivo de terceiros, criou o Blog do Francês, onde publica a maioria de seus ensaios. Passou a postar outros gêneros de sua arte em sites como o Bar do Escritor e Escrita. Em 2016 foi convidado a ser colunista da Revista Philos, e publica atualmente parte de sua obra neste periódico literário. Sua experiência com contos é recente, fruto de seu contato com o escritor e colega Roberto Medina, por ocasião da participação em uma de suas Oficinas Literárias. Percebeu rapidamente o quanto a frase de Albert Camus “se quer filosofar, escreva romances” poderia ser transposta para o gênero ao qual se dedicou na composição da coletânea a ser lançada. Ama a literatura que incita o pensar e que o liberta de seus demônios. Leitor compulsivo e romancista, lançou recentemente seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.
Um comentário sobre ldquo;A armadilha gramatical, por Caio Lobo”