Com dois séculos de história, a fotografia foi incontestavelmente um dos avanços tecnológicos que mais transformou a nossa forma de compreender o mundo, alterando o modo como vemos, como interpretamos e como partilhamos conhecimento. Hoje é no entanto o meio de expressão simultaneamente mais utilizado e mais incompreendido. Urge então olhar para trás, para o seu início, e continuar a tentar refletir sobre as questões que a sua ubiquidade não soube resolver.
O nosso trabalho enquanto fotógrafos passa, desde há alguns anos, por pesquisar e produzir obra contemporânea sobre processos do século XIX, contrariando a desmaterialização da fotografia, trazendo-a de volta à tangibilidade e a uma presença que ateste o seu caráter paradoxal, ao mesmo tempo frágil e duradouro.
Parte deste trabalho passa por investigar a obra escrita e o pensamento que acompanhavam o desenvolvimento destes processos, e de que forma estes se encaixaram nos avanços estéticos e teóricos da fotografia.
Foi através destas leituras que descobrimos a obra de um fotógrafo singular, que se não tivesse sido um grande escritor (além de pintor, químico, alquimista…) certamente não teria chegado até nós. Falamos de August Strindberg, e das suas extraordinárias incursões pela arte fotográfica. Aquilo que distingue Strindberg de outras personalidades contemporâneas que se dedicaram às artes e às ciências é que o seu pensamento era pluridimensional. As matérias sobre as quais se debruçava não estavam compartimentadas, antes se interligavam em múltiplos sentidos, gerando uma série de analogias poético-científicas em fluxos mentais, que podiam por vezes ser tortuosos.
É verdade que no século XIX, com o aparecimento da fotografia, as artes e as ciências se entrecruzaram de uma forma constante, contribuindo continuamente para os avanços uma da outra, e do mundo em geral, mas sempre de uma forma paralela e nunca concorrencial. Em Strindberg, elas intersetam-se, sobrepõem-se, acima de tudo, fundem-se.
De acordo com o pensamento da época, Strindberg procurava o conhecimento e a compreensão da realidade, quer através da sua obra literária, plástica, ou através de experiências científicas.
No que diz respeito à fotografia, pelo menos, esta busca pela verdade, não seguia nenhuma das correntes de criação ou reflexão contemporâneas. Para ele, a verdade da fotografia não se expressava através da sua exaustivamente louvada capacidade mimética, da qual ele desconfiava. Nem tão pouco se interessava por manipular a fotografia de forma a dar-lhe um aspecto mais consentâneo com a pintura, tentando elevá-la a um suposto maior valor artístico. A verdade na fotografia estava para ele no facto de esta poder revelar o mundo que se encontrava para além do visível, e isso, por não estar ao alcance do “oeil trompeur” do homem, estaria mais próximo da verdadeira realidade.
A fotografia foi importante ao longo da sua vida na medida em que lhe permitia encarar a criação artística como resposta a questões científicas ou filosóficas, em que a arte, mais do que imitar a Natureza, se criava de acordo com ela, cumprindo o seu mistério.
Uma boa parte da sua criação figurativa centrou-se no retrato, e mais especificamente, no autorretrato, como ferramenta de introspecção e autoconhecimento.
“Não me importo com a minha aparência, mas quero que as pessoas vejam a minha alma, e ela aparece nestas fotografias bem melhor do que em muitas outras.”1
Começamos o ano de 2017 completamente embrenhados na sua obra, e fizemos nossa a missão de refletir sobre os mesmos problemas, e, na época da proliferação da selfie e da efemeridade do snapchat, inspiramo-nos em Strindberg para iniciar uma série de autorretratos que procuram materializar a nossa verdade interior.
Quando se interessou por criar retratos que captassem mais do que a superfície ou a aparência do modelo, Strindberg preparou uma situação que influenciasse a expressão do retratado de modo a que a sua totalidade fosse registada: “Preparei na minha cabeça uma história que contém o máximo de humores diferentes. Conto a história para mim mesmo, enquanto exponho a placa, olhando fixamente para a vítima. Sem suspeitar do que a estou a obrigar a fazer, sob a influência da sugestão, é obrigada a reagir a estas influências que a penetram. E a placa fixa a expressão do seu rosto. No total isto dura exatamente trinta segundos – a minha história está minuciosamente calculada para esta duração. Em trinta segundos, captei o sujeito na sua totalidade.” 2
Para o nosso projeto, substituímos o poder de sugestão de uma história, pela influência mais doce e passiva da música, que era escolhida aleatoriamente por um dispositivo, de entre as músicas que tínhamos ouvido durante o ano que passou. Dessa forma, não nos seria permitido prepararmos com antecedência um determinado estado de espírito, antes teríamos que permitir que as canções que tocavam ditassem a forma aparente da nossa alma.
Baseados também na crença de Strindberg de que toda e qualquer interferência entre a realidade e a formação da sua imagem comprometia a veracidade da fotografia, começamos por, tal como ele, retirar sucessivamente elementos da câmara fotográfica, começando pela lente, substituindo-a por um pequeno furo, na esperança de poder representar a realidade de uma forma mais pura, mais “verdadeira”.
Assumindo que esta forma mais direta de fotografar pudesse captar o que não se vê – até a própria essência humana – construímos a nossa Wunderkamera3, e invocámos a nossa alma, envoltos pelas músicas que tocavam aleatoriamente enquanto posávamos para a fotografia.
A música cumpriu no nosso projeto o papel de um veículo que pudesse tocar simultaneamente a matéria e o subconsciente do retratado. O som atravessava o nosso corpo, assim como as paredes da câmara, e reverberava sobre a película, operando, quem sabe, sobre a matéria fotográfica.
Pretendíamos que o processo técnico, que permitia o aumento substancial do tempo de exposição – o tempo que a luz leva a produzir uma imagem no material fotossensível – produzisse resultados contrários aos do instantâneo fotográfico ao permitir que centrássemos toda a nossa presença no momento, que nos fundíssemos com a imagem.
Acreditámos que podia ser a nossa essência a ser gravada na emulsão sensível, e que a manifestação dessa verdade nuclear resultaria na desmaterialização das aparências.
Este projeto, que intitulamos “Wunderkamera” constitui o primeiro passo naquilo que pretendemos que venha a ser uma série de reflexões fotográficas sobre a obra de August Strindberg, que, tal como tantos outros projetos, nos proporcione o prazer de nos debruçarmos sobre a pesquisa, o processo, a realização e a partilha da aprendizagem e do resultado.
Bibliografia
1 August Strindberg, citado pelo amigo Gustaf Eisen (“Strindberg som fotograf,” Vecko-Journalen, Stockholm, 1920:14) citado por Per Hemmingson 1989b, 167.
2 August Strindberg, citado por Per Hemmingson, op. cit. ., p. 167.
3 Wunderkamera foi o nome que Strindberg deu à câmara fotográfica que construiu com o seu amigo Herman Anderson para realizar uma série de retratos e autorretratos psicológicos nos quais se pretendia captar, em tamanho real, algo da essência dos retratados.
Imagerie – Casa de Imagens, criada em Lisboa em 2008 por Magda Fernandes (Porto, 1981) e José Domingos (Paris, 1974). É uma estrutura que desenvolve as suas atividades no âmbito da fotografia, funcionando como plataforma de criação e investigação, e como espaço de aprendizagem e de partilha de conhecimento. O coletivo explora as possibilidades técnicas, conceituais e artísticas da fotografia analógica e dos processos fotográficos alternativos na produção visual contemporânea. Para conhecer mais o trabalho do coletivo, acesse: imagerie.imagerieonline.com
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Um comentário sobre ldquo;Autorretrato, (des)materialização da imagem, por Magda Fernandes e José Domingos”