Alfredo K. tinha setenta anos e, embora não aparentasse um envelhecimento acentuado, seu semblante era triste e suas rugas virtualmente mais profundas do que, em si mesmas, eram capazes de demonstrar. Há vinte anos, o velho trabalhava como porteiro em um edifício residencial no centro da cidade. Era um desses prédios antigos, com apartamentos amplos, ocupados em sua maioria por idosos, que lá moravam desde o início dos tempos, e estudantes que dividiam o aluguel em três ou quatro partes. K. era um homem cansado, não do trabalho, mas da vida, pela qual passara até então, praticamente só. Saíra da casa dos pais, na zona rural de um interior qualquer, com dezesseis anos, em busca de “melhorar de vida”. Algo que nunca veio. Trabalhou sempre em atividades braçais parcamente remuneradas, o que fora bastante apenas para manter a máquina com a força necessária para suportar o dia a dia, garantir o aluguel de um pequeno barraco na região periférica da cidade e poupar uns trocados para o sonho de ter sua própria casa. Desde que se entendera por gente, ou nem tanto assim, se esfalfava na roça do pai e depois, já na cidade, na construção civil, em feiras, como montador de barracas, até que conheceu, por acaso, um professor aposentado, síndico, que precisava de um funcionário para a portaria de seu prédio. E assim se passaram os últimos vinte anos. Ao longo do tempo, K. assumiu também a função de zelador. Eram pouco mais de trinta apartamentos e ele realizava pequenos reparos e auxiliava na limpeza. Não recebia mais por isso. Às vezes, quando fazia um pequeno serviço particular para um morador, ganhava uma gorjeta que logo depositava em sua conta poupança, alimentada há quase cinquenta anos. Queria um teto próprio, “terminar os dias no que era seu”, pensava. K. trabalhava de segunda a sábado e, aos domingos, visitava o único amigo que fizera no decorrer de sete décadas, com o qual jogava dominó nas tardes domingueiras e tomava uma pinga de engenho que lhe trazia a memória da fazenda, não necessariamente uma lembrança alegre, senão um tanto sofrida, de uma vida muito exigente para um menino de cinco anos que já era obrigado a desempenhar tarefas pesadas, mesmo para os adultos. Apesar disso, não era amargo. Apenas triste, pois concluíra, do alto de sua modesta sabedoria de semialfabetizado, que a existência humana era apenas um curso de dor, raramente entremeado de prazer e alegria. Após as intermináveis partidas de dominó, que os dois velhos faziam questão de manter mais longas até que suas próprias vidas, por serem aqueles raros momentos de felicidade que entrecortavam seus respectivos “vales de lágrimas”, que nunca brotavam para mitigar a tristeza, K. caminhava de volta para casa com um meio sorriso nos lábios, até abrir a porta de seu barraco sombrio e inóspito, e o coração enregelar novamente. Então se deitava em profundo silêncio interior, como a desejar que essa paz meio sepulcral nunca terminasse. Em seus sonhos, K. sempre via uma mulher, a única que conhecera. Lúcia! Negra e indescritível! Fugiu por entre os dedos do improvável K. Era pragmática, amava, mas não queria um “não-futuro”. Só muitos anos depois, K. foi capaz de entender aquela preta que não queria um resto de vida miserável. Hoje ele não somente a compreende, a perdoa, mas agradece ao destino por tê-la afastado dele. Seriam dois ou mais a dividir uma vida desnecessária. Amou Lúcia com desespero e paixão. Tinha então vinte e poucos anos. Depois disso, secou. Mas ainda sonha com suas pernas semicerradas a convidá-lo ao inferno. Desperta e, no telhado daquele barraco miserável, dois olhos negros o vigiam. Todos os dias. Nunca mais viu Lúcia. São mais de quarenta anos, e aquela mulher sobrevive ao tempo, à tristeza e à dor de um homem que talvez ainda viva apenas para sonhá-la. Mas só a sonha dormindo, nunca se lembra dela quando vaga pela terra dos semivivos. Lúcia! Muitas vezes a saudade o convidava à morte, mas era apenas por um instante, quando acordava e via aqueles olhos nas telhas empoeiradas do barraco. Até hoje continua sendo injusto com Lúcia. Projeta sua imagem num maldito barraco alquebrado. Além das partidas de dominó aos domingos, ao lado do amigo Antônio, e dos sonhos com Lúcia, a única sensação diferente de nada que K. tinha era a convivência com seu gato Tonico. Rajado, com as bolas salientes, uns dez anos, e uma aparência muito saudável. Embora saísse, às vezes, em busca de um rabo de gata, nunca ficava mais de dois dias fora de casa. Dormia dentro do barraco, aos pés da cama. K. podia dizer que amava Tonico e sabia que o gato o compreendia. A saúde de K. era boa, não obstante a alimentação sempre frugal. Há trinta anos não bebia, exceto nas tardes de domingo durante as partidas de dominó, e nunca fumou. Não frequentava médicos e dificilmente adoecia. A última vez que esteve em um hospital, foi há uns quinze anos, quando teve um cálculo renal. Expeliu aquele pequeno meteoro depois de três dias sangrando. Há alguns dias, no intervalo para o almoço, foi até o banco verificar o saldo de sua conta. Tinha quarenta mil reais, economia de quase cinco décadas. Decidiu então que já era tempo de jogar mais dominó, ficar mais tempo com Tonico e, quem sabe, sonhar mais com Lúcia. Soube então de uma pequena casa, no bairro onde morava, à venda por sessenta mil. Fez as contas e concluiu que, com o saldo do FGTS mais suas economias, conseguiria pagar a casa à vista e ainda sobraria algum para comprar uma cama nova, mais espaçosa e confortável para o velho Tonico. K. decidiu se aposentar. Comunicou o Dr. Miguel, síndico do prédio, e pediu um dia de folga para ir a uma agência do INSS. Juntou a papelada que tinha bem guardada num saquinho plástico. Declarações, certidões e a carteira de trabalho dos últimos 15 anos, pois perdera a antiga. Organizou tudo em um domingo após voltar do dominó e, na segunda, saiu de casa com um ânimo que não o possuía desde as longínquas noites por entre as coxas de Lúcia. Chegou ao INSS, pegou uma senha e aguardou cerca de uma hora até chegar sua vez. Foi atendido por um homem de barbas brancas, com semblante intimidador, incapaz de um bom dia!, ou sequer de um meio sorriso de canto de lábios. K. explicou que desejava se aposentar e apresentou os papéis. O homem de barbas nervosas conferiu tudo antes de falar: “seus documentos estão incompletos. A certidão de tempo de serviço que substitui sua carteira está com a data do carimbo rasurada e o senhor terá que tirar uma nova”. K. quis saber como e onde fazer isso e as barbas responderam-lhe que não era naquela agência, mas em outra do lado oposto da cidade. Como tinha o dia de folga e ainda eram onze horas, encaminhou-se para o endereço indicado. Chegou por volta de meio dia e meia, pegou uma senha, e teve de esperar os funcionários retornarem do almoço para começarem a atender os que haviam chegado antes dele. K. foi atendido às quinze horas. Estava sem almoço, mas muito ansioso para pensar em se alimentar. Dessa vez, o atendimento foi prestado por uma senhora. Cabelos bem pintados e escovados, maquiagem forte, óculos na ponta do nariz. E a mesma indiferença. Analisou os papéis de K. e disse-lhe que não era possível emitir outra certidão. Ele teria de procurar as empresas onde trabalhara, cujos registros foram perdidos com a carteira de trabalho antiga, para que elas atestassem o vínculo empregatício, o tempo de trabalho e o recolhimento das contribuições à previdência. Nesse instante, K. sentiu um vazio no estômago, mas pensou que era fome. Saiu sem rumo pela rua e parou em um bar com a intenção de beber uma cachaça. Sentou-se ao balcão, mas não teve coragem. Pediu apenas água. Já era noite quando K. chegou em casa. Alimentou Tonico, que esperava, como sempre, sobre a única mesa encostada na parede. Deitou-se em sua cama e, pela primeira vez, em anos, quis pensar em Lúcia. Queria que ela estivesse ali para consolá-lo, queria aninhar-se entre suas coxas duras e ouvi-la dizer o quanto o amava. Sentiu náuseas e vontade de chorar, mas estava seco, desde que Lúcia se fora. Olhou para Tonico que parou de comer e retribuiu o olhar. Teve a impressão de que eram, aqueles olhos felinos, os olhos de Lúcia. Teria ela se transformado em anjo, ou demônio, e enviado Tonico para protegê-lo? K. estava cansado. Agora, além do cansaço da vida, sentia também uma imensa fadiga física. Tinha setenta anos e não comera durante o dia todo. Em boa forma, é verdade, mas eram setenta, dos quais, quarenta vividos sem nenhuma esperança, sem Lúcia. Somente o amigo Antônio, o dominó e Tonico o ligavam ao mundo agora. Adormeceu e acordou já de madrugada. Saiu do barraco, tomou um banho frio no chuveiro que ficava do lado de fora, comeu um pão do domingo com leite e café, alimentou Tonico e foi-se para o trabalho. Ao final do dia, conversou novamente com o Sr. Miguel e explicou a situação. O síndico não lhe deu grandes esperanças, pois muitas das empresas onde trabalhara poderiam ter fechado e então a alternativa seria a via judicial, o que, com certeza, levaria anos para se resolver. Mesmo assim, o velho K. pediu mais um dia de folga para tentar solucionar o problema. O patrão, sem disfarçar a contrariedade, permitiu-lhe mais esse desvio de conduta. K. levantou-se no dia seguinte antes do amanhecer, alimentou Tonico, comeu, como sempre, o pão amanhecido e tomou o café com leite, e saiu em sua peregrinação, em busca da última esperança, de sua aposentadoria, de sua casinha e dos últimos anos a dormir com Tonico, a sonhar com Lúcia e a jogar dominó com o amigo Antônio. Lembrou-se da primeira empresa em que trabalhara quando chegara à cidade. Foi até o local, mas havia apenas um grande terreno murado com uma placa que anunciava a construção de um condomínio horizontal de luxo. Encaminhou-se para o outro endereço que trazia bem guardado na memória, pois foi onde conheceu Lúcia. Ela trabalhava na casa do proprietário da firma. Ao chegar, deparou-se com um moderno edifício comercial, com janelas em vidro espelhado, e não havia sinais da antiga empresa. K. sentiu, pela primeira vez, em anos, que seus laços com a vida não eram suficientes para mantê-lo a respirar, mas recobrou as forças e voltou para casa. Não fazia uma refeição completa há dois dias, e não teve fome. No dia seguinte, K. não conseguiu se levantar antes de o sol raiar, como de costume. Despertou com Tonico à sua frente, quieto, entre o dever de velá-lo e a necessidade de comer. Saiu da cama, alimentou o gato e não comeu o pão de ontem com leite e café. Chegou ao trabalho meia hora atrasado, e o síndico já o aguardava na portaria com outra pessoa. O Dr. Miguel apresentou-lhe Alexandre, um rapaz de uns trinta anos, que iria ajudá-lo na portaria. Trinta dias depois, o patrão chamou o velho K. e explicou-lhe que ele precisava descansar. Demitiu-o naquele instante. Foi indenizado no aviso-prévio e nos quarenta por cento do FGTS. Feito o acerto, depositou a quantia no banco e tirou um extrato. Tinha sessenta e oito mil reais. Eram suficientes para comprar a casa e ainda lhe sobrariam oito mil para alguns móveis novos. Porém, não tinha mais trabalho e não conseguiria se aposentar. Antes de deixar o banco, falou com o gerente e programou o saque de toda a quantia para daí a três dias. Após a retirada do dinheiro, procurou o amigo Antônio, entregou-lhe um pacote, sem esclarecer o conteúdo, e pediu-lhe que abrisse somente após três dias. Era terça-feira e ainda faltavam cinco dias para o dominó. Nessa noite K. não alimentou Tonico dentro de casa. Colocou-o para fora e pôs ração suficiente para dois dias. Antes de deitar-se, K. olhou para o teto e viu, pela última vez, os olhos de Lúcia. Dois dias depois, foi encontrado por vizinhos, morto por intoxicação com gás de cozinha. Ao seu lado, estava o belo gato rajado, com a pata sobre o rosto do dono. Avisaram Antônio, que providenciou o enterro do velho K. Após o sepultamento, o amigo voltou para casa e abriu o pacote. Havia sessenta e oito mil reais e um bilhete, escrito em um papel de embrulho, que dizia: “Estou cansado, amigo!” Assinado – Alfredo K.


Márcio Antônio Cruzeiro (Piracanjuba, 1964). Funcionário público, historiador, contista e cronista.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;A história de Alfredo K. ou um sonho para Vinícius de Moraes e Kafka, por Márcio Cruzeiro

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