Eu estava sentada no Café Central, quando a Terezinha entrou cambaleante, com um sorriso nos lábios e disse: “É triste ser velho”! Pediu um café, uma torrada e vagarosamente sentou-se à pequena mesa redonda. Há alguns anos, ela teve um AVC que a deixou ligeiramente incapacitada na fala e nos movimentos. Agora come e se expressa com alguma dificuldade. Com a boca meio apertada e dentes gastos, lá vai ela serrando o pão devagar. Em ato repetitivo, suas mãos trémulas levam a chávena do café e depois a torrada à boca. De vez em quando, deixa escorregarem as migalhas esfareladas, por entre os seus dedos. Ela é uma senhora bonita, elegante, uma bela dama lá na sua Vila Natal. Na trepidez das palavras de sua língua dobrada, reza frases numa conversa sem fé. Em um rosário de alegres feitos, conta histórias heroicas que sua memória de elefante recorda e fala de cenários vividos com a família que tanto quer: filhos e netos regados em prodígios sem igual. Mas suas palavras tardam em sair da garganta e os sons, por vezes, vêm misturados nos farelos do pão que teimam em não passar pela goela.
São tantas as Terezinhas que entram neste lugar e noutros parecidos… Ante meus olhos arregalados, os meus neurónios se põem a pensar: “porque temos de ficar velhos?!” São os idosos deste século que os filhos não querem cuidar. São aqueles que eles metem no lar e se recusam a amar. Mas, ao contrário, essa senhora vive na sua casa, perto da família, e ainda conta com a amizade e o carinho dos moradores que a conhecem. Eles a respeitam e a amam desde sempre. Esticam sempre a suas vontades para que ela possa se sentir cômoda em sua caminhada desajeitada até ao Café.
Agora entra a Diolinda, que me desperta de toda aquela minha babilônia de espírito, apregoando: “é difícil ser feliz com toda a emaranhada que há no mundo”. O governo está virado ao contrário; os pobres cada vez são mais, e os ricos ficam mais ricos a cada dia. Os impostos não contribuem para o sossego; e a felicidade a vemos indo por um canudo sem fim à vista. E agora com os americanos ficando malucos? Votam em um homem sem sentido! Que será de nós neste cantinho?
Num abrir e fechar de olhos, ouço o “pilreto” do Joãozinho que corre com os bofes esgazeados e grita para a sua mãe: “mamã…mamã…é muito custoso ser bom todo o dia”. Eu fiquei como que meio parva; deu-me a sensação de até o meu cérebro ter dado um nó com aquela alvoraçada, perguntando-me qual seria o senhor americano que iria governar o país europeu; e que diabo se passava com o garoto?!
Os minutos iam andando nos ponteiros do relógio. Nisso, entra a senhora fulana de tal, esposa do senhor doutor que, por momentos, eu penso ser ela a senhora doutora, pela maneira como se apresenta, – dizem que é por ser a esposa do tal doutor -. A fulana de tal age como se fosse ela a doutora; afinal, o marido não é doutor, mas um licenciado. Porém, na pequena vila, é doutor.
De repente, fiquei com a minha mioleira apanhada do tempo que decorria no meio daquela parolice de grandeza e incômodo da vida. Recordei as palavras do meu primo – esse sim é médico – que vive na cidade, me dizendo que prestasse atenção, pois iria encontrar muitos doutores. Disse essas palavras em tom de pirataria, e repetiu com graça: “eu cá não sou doutor, sou médico, os doutores são os outros”.
Eu sou sempre a diferente no seio do estabelecimento. Sou a não adaptada ao meio ambiente. Visto roupas diferentes e tenho uma forma distinta de estar entre eles, em uma terra que geme.
Eles se afogam em um soberbo gole de café Delta, achando que sabem tudo, e até da política que há na casa dos outros, quando eles mesmos não percebem o que há na casa deles. Achei por bem não entrar nesse diálogo, e tomei o meu carioca de limão que tantas saudades me dava. Fiquei de boca fechada e sorriso lavado, dando a entender que não havia percebido nada, e, na verdade, foi mesmo isso que entendi… nada! até porque já tivera um desagradável momento com uma conhecida de escola, que até de racista quase me chamou. Eu teria de saber que a intrusa era eu; agia, me vestia diferente, e até tinha um sotaque estrangeirado. São esses os cultos da nação, que tudo sabem e nada fazem. Afogam as suas fúrias governamentais e políticas num gole de café e numa conversa de conteúdo de insatisfações e espírito de lamentação. Fazem-no porque faz sol ou não faz sol, por chover ou não chover. Porque vai a pé ou vai de carro, porque é Socratas ou é Passos. É o velho descontentamento, sem falta de coragem para agarrar o comboio que não para à espera que decidam subir.
Entretanto, o Café fica apertado com os visitantes da terceira idade que chegam de autocarro para uma visita relâmpago à vila, e param para comprar a doçaria convencional da localidade.
E, no meio dessa invasão, perdeste-me toda a imaginação teatral de uma bela peça à moda de D. Amélia Rey Colaço nos ecrãs da RTP “Gente Fina é Outra Coisa”.
A Dona Terezinha lá foi saindo com uma amorosa senhora que lhe dá o seu gentil braço para que se possa apoiar, e assim fazer o caminho até sua casa, sem grande perturbação no seu andar desajeitado.
São essas as crónicas de uma vila envelhecida, porque os novos foram para a cidade em busca de palcos mais opulentos.


Ilda Pinto de Almeida. Encontra-se radicada nos Estados unidos há três décadas. Tem como passatempo o campo das Artes Plásticas, onde tem participado em várias exposições colectivas nos estados de Nova Jersey e Nova York, com trabalhos de colagem sobreposta – técnica mista de acrílico sobre tela. No mundo da escrita, tem trabalhos publicados em várias coletâneas.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades

Um comentário sobre ldquo;Rapsódia matinal, por Ilda Pinto de Almeida

O que você achou dessa leitura?