N. está a morrer. É uma questão de poucos dias. Talvez horas. O doutor disse que o destino de N. está nas mãos de Deus. Por um infortúnio da natureza, N. não pode acreditar em Deus. Está, pois, por conta própria. Sofrerei muito com a partida de N. Mais uma morte. Já se foram B., R., S., outra S., outro N., V. e também A, que veio antes de mim. Já deveria ter me acostumado com a morte de seres queridos, mas parece que a maioria de nós não consegue acreditar no sonho de encantamento de João Rosa, ou no que um discípulo de Freud certa vez me disse: “a morte não é apenas uma secção, é também um sexão, o maior prazer da vida”. O mesmo me afirmou o caminhoneiro L., durante uma longa viagem que fiz na boleia de seu caminhão. Ao perguntar-lhe se tinha medo de morrer em um acidente, ele me respondeu: “não, não tenho medo, pois a morte é o grande momento da vida. Tenho medo da dor, de sofrer antes de morrer”. As palavras do motorista L. e a iminência da morte de N. me fizeram pensar em uma morte peculiar, pela tristeza e pelo sofrimento que se abateram sobre mais uma, entre tantas vítimas que são violentadas antes do fim. Trata-se da morte do Sr. J.
Era 31 de dezembro de 2007. Eu estava no quarto onde o Sr. J. jazia, em estado semivegetativo há cerca de oito meses. Após anos a conviver pacificamente com o demônio do Parkinson, foi acometido por uma pneumonia e, em seguida, por um acidente vascular cerebral, descoberto tarde demais e apenas por acaso. Contava então oitenta e oito anos. O último dia do ano era marcado lá fora, como de costume, pela febre de renovação, que tomava conta de grande parte da população planetária, cujos sonhos se obrigavam a um ilusório renascimento, para esquecer que o dia seguinte repetiria, de forma impiedosa, a tragédia do anterior. Fazíamos a higiene noturna do Sr. J. e fui até a janela, talvez para eivar-me um pouco com o clima de “amanhã será um novo e melhor dia”, enquanto a mulher preparava os materiais para o curativo e a higiene do Sr. J. No prédio em frente, no mesmo andar que o meu, uma moça parecia ter saído da música de Chico Buarque, “A noiva da cidade”. “Ai, como essa moça é descuidada/ Com a janela escancarada… Ai, como essa moça é distraída/ Sabe lá se está vestida/ Ou se dorme transparente…”. Experimentava roupas para a festa de réveillon e, entre uma e outra peça, mostrava os seios, sem o pudor nativo daqueles que muitos anos depois bateriam panelas naquela mesma janela. Não sei se ela degenerou a tanto. Também não posso afirmar se fiquei a olhar a “noiva da cidade” por pura perversão ou apenas por perplexidade. E até “comuniquei” o fato à mulher. Ela se riu e me disse, em tom de pilhéria: “- Que sorte a sua, você nunca vem nessa janela”. Queria que o Sr. J. tivesse visto a moça de Chico Buarque. Talvez ele tivesse readquirido a força de viver, pois sempre gostou de olhar as “moças bonitas”. Mas ele não viu. Trocamos sua fralda, com rapidez e eficácia profissionais, pois não raro ele, no intervalo entre as fraldas suja e limpa, fazia um novo xixi e era preciso trocar tudo novamente. Naquela virada de ano, correu tudo certo.
Eu conversava muito como o Sr. J. e ele parecia me ouvir. Talvez ainda resistissem, em seus fios degradados de memória, as reminiscências de nossas longas conversas regadas a caudalosas rodadas de cerveja, que só terminavam quando a Sra. C. decidia que era hora de parar e interrompia nossas aventuras etílicas, durante as quais falávamos desde a Grécia Antiga até o glorioso Vila Nova Futebol Clube, pelo qual nutríamos paixão semelhante.
Há oito meses daquele 31 de dezembro, o Sr. J. fora transferido do hospital para a casa de sua filha, minha mulher e, desde então, não conseguia executar as operações mais básicas que o instinto de qualquer ser vivo o autoriza a realizar sem o apoio de outrem. Alimentava-se através de uma sonda enteral, de início inserida pelo nariz e, algum tempo depois substituída por outra, introduzida diretamente no estômago através de procedimento cirúrgico. Usava fraldas cem por cento do tempo e a única relação que parecia manter com o mundo se consumava através dos olhos, que permaneciam vivos e fitavam seus interlocutores como a dizer: “- Eu ainda estou aqui. Portanto, façam isso direito!”. Os cuidados eram intensos, por parte de toda a família. Mesmo assim a tendência era de as coisas piorarem. O fato de ficar deitado o tempo todo facilitava a formação de escaras, que conseguimos conter durante pelo menos uns seis meses. Contudo, mesmo a seguir rigorosamente as orientações médicas e virá-lo na cama a cada meia hora, para evitar a formação das feridas, além de utilizar óleos especialmente desenvolvidos para preveni-las, elas acabaram por nos vencer. E vieram, lentas e pequenas, para se tornar, em pouco tempo, avassaladoras e gigantescas. E passou a ser necessário levá-lo ao hospital para realizar a raspagem e a assepsia das enormes escaras, com o objetivo de evitar infecção.
Pelos idos de abril, já decorridos quatro meses daqueles belos seios da moça do prédio em frente e já sabedores de que nada mudaria naquele ano, assim como não mudou nos muitos e muitos que o antecederam, Sr. J. foi, pela última vez ao hospital cuidar de suas cruéis escaras. Quando voltou, não era mais o mesmo. Seus olhos já não nos fitavam com antes; e se fixaram imóveis e destituídos de vida, pelo menos de anima, na direção da parede branca, ou do nada. Não sei se a mulher entendeu, mas eu percebi, exato, o que ocorrera. Ele sofreu. Sofreu muito com aquele último procedimento. Sentiu uma dor física imensurável, contra a qual não tinha a mais primária condição de se debater. Estava ali, semi-(in)consciente, paralisado, com suas funções motoras e cognitivas afetadas, a impedi-lo de gritar: “- Parem! Estão me matando!” Aquela dor foi de fato insuportável e ele voltou decidido a acabar com o jogo sádico, no qual ele era a peça a ser movida, conforme a vontade e a intenção dos jogadores. E por mais que estes estivessem do mesmo lado do tabuleiro e perseguissem objetivo similar, ou seja, cuidar da melhor forma possível daquele que um dia cuidara de todos, eles não deixavam de lhe causar dor. Por não ouvi-lo, por não deixá-lo falar. Mas o que ele poderia dizer, além de: “-Basta!”. E ninguém queria ouvir “Basta!”. Todos criam que sua missão era estender a vida do Sr. J. o máximo possível, com os melhores cuidados, com carinho, amor, dedicação. Até que Deus o quisesse levar. Porém, aquelas escaras o motivaram a romper o silêncio. E ele o fez com mais silêncio. E sua decisão foi a de partir. “-O que estou a fazer aqui?”, perguntou-se. “-Por que eu devo sofrer tanto?”, inquiriu a alguém que supostamente estaria acima dele na cadeia de comando, acima mesmo dos que dele cuidavam. Não obteve resposta para a segunda pergunta, mas a primeira, feita a si mesmo, ele respondeu de pronto: “-Nada!”, ou melhor, “-Estou sofrendo, estão me torturando. Não vou mais aguentar isso. Já me decidi, vou-me embora o quanto antes”. Alguns dias depois, Sr. J. foi levado novamente ao hospital para tratar de uma infecção e não voltou para casa. Faleceu na Unidade de Terapia Intensiva e cumpriu sua promessa solene. Gostaria que ele tivesse visto os seios da “Noiva da cidade”.
N. morreu há algumas horas. Quase dez anos após o desaparecimento do Sr. J. De falência renal. Tinha quatorze anos. Por que a morte de N. me remete à do Sr. J? Primeiro porque eu sou um espírito primitivo e não consigo lidar com a morte de seres amados. Não me convencem as histórias de mundos maravilhosos, para onde os justos serão conduzidos após sua desgraça terrena. A segunda razão é essa: a desgraça terrena. A começar pela natureza, tudo foi montado para nos ferir, a nós seres de carne e osso. Para nos ferir e nos causar dor. Uma simples falha no código genético e pronto. A vida já vai ser incompleta e trágica. Uma célula que se rebela e Bum! Câncer, dor, mais dor. Um terremoto, um furacão ou qualquer outra peraltice da natureza, essa idealidade de perfeição, criada por um onipotente fazedor de merda, e lá vamos nós, de novo para o buraco da dor, da miséria, do choro e do ranger de dentes. E tudo o mais que construímos por nossas próprias mãos. A realpolitik e suas bombas e lança foguetes e as legiões de degredados, famintos, doentes, desterrados e renegados pelos alimentados e seguros em lares com aquecimento central e smartv conectada na CNN a mostrar, em tempo e cores reais, o lançamento das bombas e foguetes que desterram, mutilam e matam. E há os idiotas que, bêbados, nos atropelam em cruzamentos de avenidas iluminadas. E há os senhores do dinheiro que nos assassinam em doses cotidianas de trabalho árduo e mal pago, durante trinta, quarenta anos. E, por fim, àqueles que resistem à sevícia e à violência da humanidade contra ela própria, resta ainda a natureza. Sempre ela, a maior criação de Deus. N. tinha quatorze anos e poderia ter vivido mais cinco ou seis. Mas seus rins não eram perfeitos, como perfeita é a natureza dos furacões e terremotos. E faliram. E se apagaram para sempre seus expressivos e apaixonantes olhos azuis. A morte de N. embora me remeta à morte do Sr. J., também guarda com esta uma diferença essencial. O Sr. J. se foi quando Deus o quis, assim pensam os seus e os outros. Eu insisto que sua partida foi deliberação própria. Mesmo assim, ele tardou em se decidir e sofreu durante onze longos meses. A partida de N., no entanto, não foi guiada pela mão de Deus, mas pela do Dr. Kevorkian. Resolvemos que ela não sofreria e é quase certo que se sofreu, sofreu pouco.
O Sr. J. faz muita falta e N. também fará. A vida sem N. não será a mesma, pois sua existência, assim como a do Sr. J. e de R. e de S. e da outra S. e do outro N. e de V. e de A., a que veio antes de mim, significou um lapso, um breve interregno nesse decurso sem sentido que é a vida. Talvez só se possa encontrar o sentido da vida nas caudalosas rodadas de cerveja que arrancavam sorrisos meus e do Sr. J., que se sentia puro e feliz, quando embriagado. Talvez o sentido da vida só possa ser apreendido de forma muito tênue no breve faiscar dos olhos azuis de N. e dos olhos verdes de R. Não vou mais buscar o sentido da vida, pelo menos não na obra do onipotente fazedor de merda. Tentarei aprender algo com a partida de N. Tentarei colher mais faiscares em olhos que também procuram sentido para a vida. Mas talvez eu não consiga. Talvez apenas a violência seja capaz de (re)significar a vida e eu tenha que guardar o faiscar dos olhos de N. para compor uma poesia futura. Por enquanto, eu preciso estourar alguns miolos e mandar às favas o onipotente fazedor de merda. E, afinal, parece que a vida não é sem sentido porque é caótica, mas porque impõe a ordem, a ordem do Parkinson, da célula rebelde do câncer, da realpolitik, do idiota bêbado no volante, do senhor do dinheiro. Isso não é o caos. É a ordem, que a maioria de nós aceita como vontade do onipotente fazedor de merda. O grande ordenador. N. se foi. Me pergunto se, no mundo concebido pelos adoradores do onipotente fazedor de merda, ela encontrará o Sr. J. e poderá, através do faiscar de seus olhos azuis, dizer-lhe que os mesmos que a pouparam de um longo e cruel sofrimento foram aqueles que o torturaram durante meses, com a melhor das intenções, é claro. Conforme a vontade onipotente, do onipotente fazedor de merda.
Quiçá eu possa crer nessa fábula onipotente e então, quando meus rins falharem, ou minhas células se rebelarem, ou algum idiota bêbado me atropelar, eu possa reencontrar o Sr. J. para novas e caudalosas rodadas de cerveja, dessa vez, quem sabe, puro malte. E poderei de novo me alegrar com o faiscar dos olhos de N. e R.
Sinto muito Sr. J., sinto muito N., tudo isso é uma grande e onipotente merda.


Márcio Cruzeiro (Piracanjuba, 1964). Historiador, servidor público e contista.

Publicado por:Philos

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