Na beira do Mediterrâneo, em uma das cidades mais antigas da humanidade, surgiu, no começo deste ano, o Coletivo de Artistas em Exílio, vinculado ao governo francês. Nele, foram expostas as obras do primeiro artista brasileiro exilado por pressão religiosa na Europa nesse período nefasto do país. Quem é ele?
Órion Lalli, um fazedor, que trabalha com teatro popular desde os quatro anos de idade, cresceu em uma família de artistas, fundou o grupo Tarto de teatro e hoje está refugiado em uma das cidades mais importantes do sul da França.
Na data desta matéria, entrevistei-o num galpão escuro na periferia da cidade, e o questionei se poderia falar na entrevista onde estávamos, e me lembro bem da resposta: –Prefiro que não. Não sei até que ponto eles estão dispostos a atravessar o Atlântico e me matar.
Em 2017, Órion descobriu que vivia com HIV e decidiu transpor isso para a sua obra, sem parecer um influencer digital, mas sim, levando-nos a um modo de questionamento e arte sobre o tema. Mas o que o atravessaria a partir da ascensão da extrema direita no governo brasileiro?
Surge daí uma necessidade de se falar sobre sexo, de quem são essas instituições e como o Estado interfere nessas relações. Até onde o Estado está vinculado aos seus cidadãos e principalmente como esse novo estado repressor religioso brasileiro pretende se mostrar. Nasceu então sua primeira performance em que se propunha a fazer sexo com outras pessoas ao vivo, com apresentações pela América Latina. Já em 2019 surge uma oportunidade: uma cartografia de artistas do Rio de Janeiro em que apresentou o trabalho “é necessário passar o fio pelo buraco da agulha ou rente ao corpo”, performance onde costurava exames de HIV e alguns outros documentos em um banco de praça no Centro do Rio de Janeiro, próximo ao Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Mas em determinado momento a performance teve que ser parada, pois alguns policiais não estavam gostando nada do que estavam assistindo.
Em 2020, a convite do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO), Órion iniciou a montagem de uma exposição coletiva com sua obra “Todes es Santes”. Após alguns dias de exposição, começa o que talvez tenha sido um dos casos mais agressivos de censura durante o governo Bolsonaro: O então deputado Márcio Gualberto (PSL) solicitou ao ex-prefeito do Rio de Janeiro, o conservador religioso, Marcelo Crivella (Republicanos), que fossem removidas as obras do CMAHO. Segundo eles, as obras em questão colocavam à prova os valores cristãos do então presidente da república, o militar Jair Messias Bolsonaro (Sem partido). No mesmo momento o artista começou a ser ameaçado em suas redes sociais por fanáticos religiosos e grupos neonazistas apoiadores do anti-presidente. As ameaças foram ficando mais intensas, mas a resposta de proteção por parte do CMAHO, da própria curadoria da mostra ou mesmo da polícia não veio. Por fim, a Secretaria de Cultura determinou ao CMAHO que as obras fossem retiradas da mostra. O artista retirou as obras e começou a responder por crime de vilipêndio religioso.
De acordo com o Projeto de Lei Ordinária 1263/2020 da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco – Alepe, é proibida a execução de obra artística, custeada pelo Poder Público Estadual, que promova ações de escarnecimento de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar [tratar com desprezo ou desdém] publicamente ato ou objeto de culto religioso.
Ao chegar na delegacia para dar queixa de sua perseguição, a delegada em questão [seu nome não pode ser citado] decidiu não realizar a ocorrência. Mas pediu que o artista voltasse com os responsáveis do Museu ou responsáveis pela curadoria, para fornecerem depoimentos no caso que já estava aberto. Os diretores do CMAHO e as curadoras da exposição decidiram que não iriam ceder depoimentos. Até hoje não existe um depoimento oficial, nota ou palavra sobre o caso de censura sofrido pelo artista. Talvez sobre outra ótica, a mesma censura que aconteceu com o artista que dá nome ao Centro Municipal.
Após tantas ameaças, Órion decidiu sair do Centro de São Paulo, onde vivia, e voltar para o interior do Estado onde cresceu. Mas ficando longe de sua família, que não poderia saber sobre o seu paradeiro. Já instalado no interior de São Paulo, Órion recebe o convite pela Freemuse [uma organização não governamental internacional e independente que defende a liberdade de expressão artística e a diversidade cultural], para participar de um webinar no Conselho Especial das Nações Unidas (ONU), sobre a censura que sofreu pela repressão religiosa no Brasil. O artista, com medo, falou para a organização do evento que não sabia as consequências que suas falas poderiam causar. Já era de conhecimento da ONU e do Conselho Econômico e Social da Unesco, que as pessoas que o ameaçavam estavam envolvidas com as milícias do Rio de Janeiro. Os organizadores do evento ofereceram todo apoio e proteção ao artista caso acontecesse algo após as suas falas. Apoio esse que nunca chegou.
No dia de sua apresentação no webinar da ONU, fora deixada em frente à sua casa, em São Paulo, uma mala em chamas, queimando próxima ao portão e ao muro. Junto com a mala, uma carta escrita à mão com uma mensagem de cunho religioso: “Assim trabalha o Senhor”.
Alguns dias depois, à noite, uma luz forte de carro entrou pelas frestas da casa em que Órion morava e um cachorro morto foi abandonado em frente à porta. Nesse momento o “medo e desespero já haviam tomado conta de mim”, nos conta emocionado. Ao entrar em contato com os advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de São Paulo, o artista descobre que essas pistas eram, na verdade, traços clássicos de extermínio da milícia. Ficou claro como disse o próprio advogado: “Se eles não te matarem hoje, amanhã eles vão te matar”.
Órion cortou o cabelo, mudou suas roupas, privou-se das redes sociais e viveu escondido entre os prédios de um bairro calmo de São Paulo por um mês e meio, com sistema digital na porta e segurança 24 horas por dia, sete vezes por semana. Nesse período, o artista não manteve contato com amigos ou familiares. Órion já era um artista exilado dentro do seu próprio país.
Depois desse tempo aprisionado, vendeu o que possuía para conseguir fundos para viajar para fora do Brasil e começar uma nova e distante vida de sua realidade. Hoje, na condição de artista refugiado na França, Órion segue o seu tratamento contra o HIV e trabalha em terras distantes da sua.

No momento em que essa matéria foi realizada, Órion estreou sua primeira exposição na França intitulada “Dieu a le $ida” (Deus tem Aids), que teve sua vernissage no mês de janeiro, no país. Uma noite performática com suas obras que falam sobre essa fase de readaptação e força necessária para continuar. Os diálogos de um corpo queer são a real pauta de suas produções, que falam sobre os “oceanos de distância que foram criados pelo simples fato de existir”.
Órion é o nome dado a uma constelação. A lenda diz que Órion era um gigante e ganhou de seu pai, Poseidon, o poder de andar pelas profundezas do mar e por sua superfície. No Brasil, podemos ver Órion através das estrelas conhecidas como Três Marias, que são o centro da constelação e fazem parte do cinturão do gigante. Cabe-nos pensar quais as profundezas ou superfícies que esse artista ainda vai mergulhar ou submergir para viver. Aqui na Philos, você lê e vê parte desse mergulho.