Terminou o verão, época típica das baratas. Você encontrou alguma em sua casa? Pois o que é repugnante aqui, na vida concreta, na literatura pode ganhar outro conceito, que não seja tão nojento assim. Vou começar falando de “A metamorfose”, do escritor tcheco Franz Kafka, que completou cem anos de publicação em 2015. Sim, é um livro antigo, mas é considerado um clássico, um dos mais traduzidos e lidos do mundo, que desperta discussões até hoje por seu conteúdo surreal.
Em um dia, como outro qualquer, o personagem principal, o jovem Gregor Samsa, acorda atrasado para o trabalho e nota que não é mais um humano, e sim um inseto monstruoso. Pelas descrições de Kafka, trata-se, certamente, de uma barata. O surpreendente é que Gregor está muito mais preocupado com o horário de chegada ao trabalho do que com sua forma horrenda. Toda a família de Gregor é sustentada pelo emprego dele, que agora corre risco. Os pais se preocupam mais com isso, com o dinheiro que tem que entrar na casa, do que com a metamorfose do filho. A irmã é a única que demonstra compaixão, selecionando os restos de lixo que podem ser dados a ele, que nunca mais sairá do quarto.
Outra obra que também traz a barata em destaque é “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector, livro lançado em 1964, da autora que faleceu em 1977. O inseto não é o personagem principal, mas participa de uma cena fenomenal da literatura brasileira. G.H. é uma mulher bem sucedida que se vê sozinha em seu apartamento, depois da demissão da empregada. Ao conferir como a mulher deixou seu quarto, encontra uma barata no armário vazio e a esmaga com a porta. A partir disso, a personagem mergulha em reflexões profundas sobre o sentido da vida, até que resolve provar do corpo da barata, “de sua massa amarelada”, em um ato de “comunhão” com o inseto.
Na língua portuguesa, há um verbo chamado desbaratar, que significa afugentar, “colocar para correr”. Esses personagens não fizeram isso. Ao contrário, mostraram-nos o inusitado, o inesperado. São duas dicas de leitura que valem a pena! “A metamorfose”, de Kafka, é um livro fininho, ótimo para quem está começando no hábito da leitura.
E eis que o ser repugnante se transformou em algo mágico. A literatura tem esse poder.
Munique Duarte (Santos Dumont, 1979). É jornalista, formada pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Lecionou língua espanhola por dez anos, tendo estudado no CELEC – Córdoba (Argentina). Tem textos publicados em diversos sites, revistas e jornais literários, como Jornal Relevo, Jornal Opção, Revista Diversos Afins e Livro&Café. É idealizadora e apresentadora do programa mensal Literatura na Rádio Cultura, em Santos Dumont, Minas Gerais. Participou das antologias . É colunista da Philos na sessão “Não deixe de ler”.
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