o pai olhou para baixo, para o jornal onde lia sobre a miséria da aprovação da reforma trabalhista, em seu roupão azul puído e à direita sua caixa de remédios para diabetes e pressão e sorriu um sorriso de vitória, porque tinha salvo a filha da barbárie, tinha deixado-a a salvo simplesmente por colocar música erudita na hora do almoço, no programa de rádio que os entendedores torciam o nariz sempre que era mencionado, sua filha estava salva, ela saberia os códigos dos homens de escritórios com piso luzidio e estantes de madeira de lei, hoje um pouco modificados na estética, é verdade, mas ainda os mesmos senhores ou os filhos ou os netos dos senhores que lhe negaram leite e pão ao não honrar a dívida que tinham com o pai do pai, a filha poderia entrar nesses escritórios, ter ela mesma um escritório, ser chamada de doutora e não ter nunca que baixar os olhos e repetir “sim, senhor”, nem ter o medo, o medo que gela os ossos, o medo de estar à mercê – sim senhor, eu entendo, claro, agora não é possível/não há vagas/não é mais necessário, sim, senhor, como o senhor quiser, é claro que eu posso, mais horas sim, senhor – o pai tinha certeza, ali, velho, depois de toda uma vida tendo chefes – “o melhor patrão é o Estado” – seus olhos grandes que a filha tinha herdado, olhos de criança que ele com muito cansaço passava pelo jornal, o cansaço de uma vida chamando os outros de doutor mas a filha, a filha escaparia com certeza e pai nós não escaparemos. ninguém escapará, salvo os de sempre.


Laura Torres (Belo Horizonte, 1981). Poeta de gaveta e revisora de textos alheios.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades

Um comentário sobre ldquo;Salvo os de sempre, por Laura Torres

O que você achou dessa leitura?