Em algum momento, aceitei a ideia de que passar o carnaval dentro de um iglu de concreto, num camping, à beira do mar, seria uma coisa boa. Não era uma escolha, mas uma prova de irresponsabilidade. Liguei meu Transglobe Philco, nove faixas de onda, e girei os botões em busca de ouvir um blues. Já não suportava o som de pandeiros, cuícas e tamborins; Zé Keti, Emilinha, Marlene, João Roberto Kelly. Não cheguei a achar. O rádio começou a largar uma fumaça malcheirosa de transistores queimados e, em poucos segundos, parou de funcionar. O cheiro acordou minha mulher que olhou em direção ao rádio e falou: “220”. Apenas isso. Puxei o fio da tomada e empurrei o rádio fumegante com um tabefe bem dado. Espatifou-se no chão, estava acabado. Não precisaria levá-lo de volta pra casa ao fim da viagem. Deixei o camping e fui à rua. O iglu era a coisa mais feia, quente, desconfortável e insalubre que eu havia experimentado, pior que uma sauna de homens peludos. Sentia-me irresponsável por ter caído naquela história toda sobre camping, praia, carnaval e iglus de concreto armado. Bem pintados e azuizinhos queriam parecer um grande bloco de gelo. Nos muros que cercavam o terreno, via ursos polares passeando, impressos numa paisagem glacial. Pinguins, morsas, mergulhões, um esguicho de baleia, um narval, orcas e um esquimó com um peixe espetado na ponta de um arpão. E ainda faltavam três dias para o carnaval terminar. Aquilo tudo me fazia aprender como as mulheres são boas no que fazem. A minha, suando em bicas dentro daquela fortaleza de cimento e vergalhões, continuava defendendo a ideia de que havíamos feito a coisa certa vindo ao camping descansar por quatro dias inteiros. Afinal, eram só quatro dias sob os sóis escaldantes de todos os fevereiros. E havia a praia, a água gelada da praia, o sal da praia, os barcos da praia, a areia da praia, a água de coco que eu não parava de beber querendo me hidratar a qualquer custo. Detesto sal, sol, areia, barcos, praia. Uma insanidade. E ela sabia o quanto eu detesto tudo isso. Estar ali, como palha ao sol, esperando a catástrofe de um incêndio. E a ouvia dizer como eu era teimoso e intransigente, incompreensivo, afetado demais por um calorzinho de merda como aquele. Quase um maricas, um veadinho. À noite, ela dormia pacificada pelos prazeres do dia. Submersa em sua poça de suor, estava no paraíso, pelo menos por quatro dias. Aquilo era sua forma de defender a ideia de que fizéramos a coisa certa indo parar dentro de uma bola de concreto com janelas que pareciam saídas de casinhas de cachorro. Às vezes, ela ressonava, roncava. Seria o canto da sua passiva tranquilidade, da boa escolha que fizera. Do lado de fora do camping, eu observava morcegos cruzarem a circunferência luminosa da lua. Outros homens, como eu, faziam a mesma coisa. Fumavam, outros bebiam cervejas geladas. Sabíamos que éramos todos uns tolos, e pelo mesmo motivo. “Calor, hein…” “Calor…” Não era apenas o calor. Era o preço de evitar uma desavença doméstica que duraria por algumas semanas. Quatro dias sempre seriam mais curtos que algumas semanas. Os números informavam da vantagem de estar ali. Quatro sempre será menor que sete, menor que quatorze, menor que vinte e um. A depender do humor de cada esposa. O bom era o silêncio e o blues que ouvia. Por algum tempo, imaginei que não ouvia, mas desejava estar ouvindo o blues que se frustrara com o incêndio do rádio. Depois me dei conta de que, em algum lugar, alguém achara a estação que eu procurava, e na voltagem certa. Não foi difícil encontrar um bar de calçada onde um rádio sintonizava uma Jam Session Blues. Elmore James, Robert Johnson, Buddy Guy, Waters e John Lee Hooker cantando Boom, boom, boom, boom. I’m gonna shoot you right down… Sentei e pedi uma cerveja bem gelada. Com o tempo, o bar começou a se encher com os caras que eu via caminhar desorientados pelo camping, dessorando sob coqueiros, bebendo uma cerveja atrás da outra ou se hidratando com água de coco, envolvidos numa procura insana por uma sombra.
José Angelo Rodrigues (Rio de Janeiro, 1954). Professor e escritor.
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