Na manhã em que Rodrigo ficou sabendo que o seu pai havia morrido, foi trabalhar. Antes, tomou, como de costume, um banho de quatro minutos e meio, meia xícara de café e comeu uma torrada com manteiga. Vestiu calça e camisa e apertou-se no último vagão do metrô. Usou a desculpa de ter de trabalhar para a mãe não lhe cobrar a viagem para o enterro. Achava que não valia a pena percorrer 380 quilômetros para verbalizar 20 anos de silêncio no ouvido de um morto. Manteria todos eles aprisionados entre os nós das suas cordas vocais torcendo para não se materializarem em redondos pedaços de carne cabeludos e com dentes que consumiriam, de vez, a sua capacidade falar. Sentado em sua estação de trabalho, passou o dia mudo. Como de costume. Perdido nos pensamentos que lhe infestavam a cabeça numa velocidade maior do que a boca conseguia expô-los aos colegas. Ao final do expediente, apertou-se no último vagão do metrô e voltou para casa. Como de costume, esquentou a porção de escondidinho de frango no micro-ondas e dormiu assistindo televisão. Naquela noite, seu sono foi velado por um documentário sobre os rituais mais antigos das tribos da América Latina, do canal National Geographic. Na manhã seguinte à morte do pai, Rodrigo acordou e, como de costume, banhou-se, comeu, vestiu-se e foi trabalhar. Na distância de um quarteirão que percorria a caminho do metrô, foi abordado por uma mulher pedindo orientações sobre o caminho a tomar. – Moço, bom dia! Você pode me dizer como chegar na Praça da Luz? – Rodrigo abriu a boca, mas nenhum som saiu. Pigarreou uma, duas vezes e nada. Com a mulher esperando uma resposta, respirou fundo e forçou a expulsão de uma palavra. No lugar, um grunhido tímido ressoou na rua. Tapou a boca com as duas mãos. Tentou falar novamente. Outro grunhido, dessa vez um pouco mais alto. Furiosa, a mulher andou em direção contrária a ele, resmungando: — Nesta cidade só tem louco mesmo! O coração de Rodrigo batia vertiginosamente. O que estaria acontecendo? Por que não conseguia falar? Parou no boteco da esquina e tentou pedir água. Grunhido. Apontou para a água do outro lado do balcão. Após beber o líquido insípido, perguntou quanto tinha de pagar. No lugar das palavras, grunhido. Voltou apressado para casa; as duas voltas de chave necessárias para abrir a porta, como de costume, o irritou. Foi até o banheiro e abriu a boca para avaliar a garganta e as cordas vocais. Não avistou nada de anormal. Não sentia dor alguma, estava bem. Comeu um pão com manteiga para amaciar a garganta. Grunhido. Tomou um chá quente para aquecer as cordas vocais. Grunhido. Procurou na internet sintomas de mudez temporária, mas nada achou sobre grunhidos. Não estava mudo, apenas os sons das suas palavras estavam todos misturados. Falava, mas era como se as sílabas pronunciadas se fundissem no ar e se transformassem em um único ruído. Achou melhor ficar em casa e descansar, devia ser um mal-estar passageiro. Mandou um e-mail para a chefe, justificando a ausência em razão de um destempero intestinal, e ficou mudo em sua casa, preso aos próprios pensamentos, como de costume. No dia seguinte à semimudez adquirida, Rodrigo tentou falar. Grunhido. Inquieto, vestiu-se e foi ao pronto atendimento do hospital que frequentava há dez anos. O médico de plantão o examinou: “É estresse” – disse ele. Medicou um calmante mais forte e assinou um atestado de cinco dias de afastamento do trabalho. De volta para casa, Rodrigo tomou o calmante e ligou a televisão. Estava sendo reprisado o documentário sobre os rituais mais antigos das tribos da América Latina. Entorpecido pelo efeito do remédio, assistiu a uma curandeira colombiana fazendo pequenos cortes na garganta de uma menina como intervenção para afastá-la do silêncio. A cada corte feito, a curandeira cantarolava ritmos indígenas. Close no rosto da menina para mostrar as lágrimas caindo. Close nas mãos em garra do pai segurando os magros bracinhos da garota. Close no rosto do pai de Rodrigo. Close na garganta de Rodrigo sendo cortada pelo seu pai. Close do sangue escorrendo da garganta aberta de Rodrigo. Boiando no espesso rio vermelho que se formava, pequenas bolas do tamanho de almôndegas gritavam ofensas ao homem com a lâmina empunhada:
– Você é um bêbado escroto!
– Machista e misógino!
– Ignorante!
– Sempre tive vergonha de você!
– Você acabou com minha vida!
– Eu odeio você. Odeio!
Depois que todas as bolotas ofensoras foram expelidas e dissolvidas no tecido da roupa de Rodrigo, o pai, munido de agulha e linha, costurou, com a habilidade de um cirurgião, o corte feito de orelha a orelha no pescoço do filho. Quando terminou, beijou carinhosamente a face de Rodrigo e saiu da sala sem dizer uma palavra, como de costume.
Marcia Dallari (São Paulo, 1980). Nascida no interior de São Paulo, mas mora na capital há 18 anos. É consultora de educação corporativa durante o dia e escritora à noite e aos fins de semana. Já publicou em revistas literárias e é autora do livro de contos “Romanxorcismo – 12 contos de amor, sexo e dor de cotovelo” que será lançado em maio pela editora Penalux.
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