A revista entre meus dedos data de 1977. Planeta (Editora Três), um periódico sobre coisas reais-fantásticas presentes no cotidiano físico, mental e espiritual. Sobre sua abordagem holística, basta sabermos que pretendia ser o espaço editorial das discussões sobre a fusão entre mente e corpo, um campo de embates entre o movimento cultural do realismo fantástico e novas reflexões sobre a mentalidade integrativa que se manifestava, na época, em todas as áreas do conhecimento. Na capa, com destaque central, uma mulher empunha fones de ouvido na fotografia em preto e branco. Eu reconheço suas feições, é Hilda Hilst.
“Um poeta conversa com os mortos”, chama a reportagem. Através de uma entrevista concedida pela autora em sua Casa do Sol, em Campinas, ela discorre sobre a pesquisa acerca das vozes parafísicas que buscava entre as ondas do rádio.
A mesma mulher que encantou o país batizando a morte de insana, fulva, feixe de flautas, calha e candeia. Essa mesma mulher – a quem a morte era um mergulho no nada – insistindo em provocar novas leituras, a desafiar os limites da escrita humana sobre o tempo: uma senhora lúcida a ouvir sussurros pela casa tomada de silêncios.
Nos caracóis, nas sementes
Em sépia, em rosa mordente
Como te emoldurar?
A partir do contato com Friedrich Jurgensson, Hilda inicia, nos anos 1970, seu trajeto como leitora de vozes. Deixa um gravador acoplado a um rádio enquanto transita pelos cômodos, conversa com amigos, descansa. Vez em quando, palavras soltas aparecem sobrepostas às conversas.
“Certa vez, tinha sintonizado a rádio Eldorado de São Paulo. De repente, no intervalo, entre um movimento e outro, ouço uma voz de mulher falando rapidamente, de forma quase declamada. Após escutar a gravação na fita, outra surpresa: a voz falava em francês. Uma frase bastante longa, da qual tenho dúvidas apenas sobre uma ou duas palavras: Dans ce roman (nous eumes ou n’osez) des petites fils. Chante avec notre ami. A tradução: Neste romance, filho pequeno. Cante com o nosso amigo”.
É curioso associar a poetisa das imagens líricas e da crítica ao sistema editorial à pesquisadora parafísica. Sua busca por sons e sentidos – por maneiras de deter a voz e conter a fala – demonstra a mesma técnica obsessiva em relação aos seus poemas. Na entrevista inédita encontrada em janeiro de 2017 pela cineasta Gabriela Greeb, na qual é entrevistada por Mora Fuentes, Hilst comenta sobre a solidão.
“É preciso que você tenha uma solidão bastante acentuada. Que você repense diariamente esse seu estar no mundo, seu existir. Estou e não estou em solidão. Há a possibilidade de eu conversar agudamente com algumas partes minhas que eu ainda desconhecia. E tanto desconhecia que foi só aqui que pude trabalhar a linguagem, sentir o veículo da linguagem com mais vida. Havia uma possibilidade de grandes confissões nesse estar só”.
Te vi semente de som
E te tomei. Patas, farpas
Jato de sol, açoite
Borbulha nas águas frias.
Tu eras morte.
A obscena senhora H permanece a desafiar a linguagem, a língua, a lógica. Na coletânea de entrevistas “Fico besta quando me entendem”, reafirma a possibilidade da arte como conexão entre outros mundos dizendo que toda sua obra é uma homenagem à loucura. Sua vontade, que sua casa fosse transformada em um centro de estudos psíquicos sobre a ressurreição da carne e a imortalidade da alma, conseguiu tantos críticos quanto seus escritos. Para ela, a alma era construída pela vivência e, portanto, permanecia como parte suprapessoal do homem.
“Certa vez, consegui uma gravação extraordinária. Estava com o gravador acoplado ao rádio, sintonizando a Rádio Andorinhas de Campinas. No ar, uma música americana. De repente, no meio da música, uma voz nítida disse: Estudando, Hilda?”
A ficção como experimento da realidade e a realidade como contraponto da ficção: façamos aqui um delineamento invisível. O ímpeto criativo também se manifesta como um processo de ouvir vozes, diálogos com universos paralelos, flertes com novas dimensões. Como afirma Freud sobre a estética, o fazer poético é também um trabalho psíquico elevado ao grau do impossível. Dessa maneira, não estaríamos nós a construir relicários a partir da busca por vozes?
Em outra entrevista, Hilda comenta sobre sua visão esotérica do universo ao afirmar categórica: o ser místico é aquele que se pergunta em profundidade. A ela, muito mais do que a crítica à realidade, interessava a descoberta e criação de dimensões absolutamente novas, indizíveis, que tomassem as pessoas pelo estômago e provocasse o susto.
Tanto a poesia quanto as possibilidades místicas não advém da área do acreditar, mas do saber. Esse saber acerca do potencial energético da arte a fazia “escrever não para passar o tempo, ler não para passar o tempo, mas para ganhar o tempo”. Na mesma entrevista, ainda afirma que o ideal é conseguir, em vida, reunir a emoção, a razão e os sentimentos num mesmo processo cognitivo.
Adentrar o universo artístico é sempre um fenômeno heterocósmico, na tradução do termo como a possibilidade real de transitar por diversos mundos a partir da tomada da obra para si. A realidade é fato, mas também é símbolo. Também se constroem parâmetros culturais, para que possamos definir o que é real do que é fictício. No entanto, apenas a partir do afastamento do real como contrato é possível a compreensão de um mundo livre, onde a realidade concreta abre espaços para outras percepções.
Eis que Hilda nos ensina mais uma lição: em qualquer atividade, seja ela artística ou cotidiana, aprender a valorizar o que se apresenta além da razão. Saber valorizar o que emana, para assim fazer-se livre, tão livre a ponto de perder o medo de falar palavras como “místico” e “alma”. Saber diferenciar a arte da medicina, por exemplo. Aprender que o conhecimento e o impossível não necessitam estar desassociados como em um duelo. Aprender a visitar outros mundos possíveis.
Te batizo Prisma, Púrpura
Rosto de ninguém
Unguento
Duna
Quando é que vem?
Para Hilst, o próprio processo da escrita era um ímpeto de debilidade, no sentido de ser muito mais uma força do que um ato. Uma necessidade tão grande de se espelhar em alguma coisa, de efetuar trocas sensíveis, de conectar-se. Afinal, esse deus ao qual a própria poetisa denominou de Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscuro, O Sem Nome é, de repente, uma certeza e interrogação constantes.
Escrever, no entanto, parece uma ponte entre a fina linha da morte e a eternização da memória. Escrever como uma explosão de dizer o que deve ser dito, buscando “a perplexidade do ser humano afinal incendiado de emoções, procuras, buscas e perguntas”.
“Quem se recusa obstinadamente a sequer considerar a hipótese de que alguma coisa sobrevive à morte física, certamente se revolta ante a possibilidade de que alguém esteja recebendo mensagens de falecidos. (…) provar que os mortos conseguem comunicar-se de forma inteligente significa provar que a inteligência permanece após o desaparecimento do corpo”.
Antecipando o filme “Hilda Hilst Pede Contato” de Gabriela Greeb, a ser lançado em 2018, que retratará de maneira documental e poética a busca pela imagem da autora e suas vivências na casa em Campinas, nós é que aguardamos contato. Dizendo tanto a partir de seu legado literário, talvez a criatura/criadora tenha afinal provado seu ponto: é possível que a voz sobreviva à morte. Hilda ainda sobrevive. Ouçamos, então, suas infinitas vozes que perpassam o desassossego entre esse tempo-espaço.


Rafael Zen (Brusque, Santa Catarina, 1987). É escritor, artista visual e educador. Mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (UDESC), é co-organizador do Coletivo Hiato, comunidade criativa catarinense.

Publicado por:Philos

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