Escreveu Lossa no La verdade de las mentiras: aqueles que buscam a leitura de um romance são os que não se contentam com uma vida só. Aliás, não somente o peruano o afirma, a ideia foi tocada pelo italiano Tabucchi, pelo português Fernando Pessoa, pelo brasileiro Ferreira Gullar, pelo turco Orhan Pamuk.

Quando lemos um romance, de certa maneira atravessamos uma ponte em direção ao outro, saímos do espaço claustrofóbico do “Eu”, ainda que esse outro seja no final das contas uma projeção de nosso ego. Ler um romance é conhecer sentimentos, pensamentos, sofrimentos e situações de outras pessoas – um brasileiro pode hoje se passar por um prisioneiro forçado na Sibéria, erguendo blocos de concreto a menos de trinta graus de temperatura e tendo no estômago apenas uma côdea de pão e uma sopa rala, como sucedeu com Denisovich: pode não sentir de fato a dor fisiologicamente, mas algo nele crescerá que o fará revoltar-se com a injustiça da fome.

Dedicar-se à leitura de um romance é até mais do que se passar pelo outro, é tornar-se outro, sentir e viver pela percepção alheia, cuja fonte ou resultado é aquilo que os formalistas russos chamavam de estranhamento – o estranhamento de quem está vendo o mundo pela primeira vez. Em Tolstói, mostra-nos Tomachevsky, vemos o mundo pelos olhos de um cavalo – nosso Graciliano mostra o homem pelos olhos de um cão.

Que sistema político senão a democracia para ter o romance como seu gênero máximo de expressão?

Pois Orhan Pamuk, romancista turco, Nobel de literatura, dá-nos a entender em seu O romancista ingênuo e o sentimental que o romance é um gênero poderosíssimo para o exercício e a formação da democracia. Autor de um país emergente, não ocidental, é ele quem mais foca a atenção no fato de que tal gênero literário tem como força central a captação da realidade pelos órgãos da percepção dos personagens. Todo o seu livro é a defesa do gênero literário, a defesa do papel do escritor num país cuja última notícia que nos chega é a de uma tentativa de golpe militar seguida por uma repressão ditatorial.

Mas nem todos são otimistas e veem arco-íris nessa relação romance x democracia.

É o caso de um grande crítico como o Alfonso Berardinelli, para quem, curiosamente, nunca o romance foi tão ameaçado quanto agora, justo quando boa parte dos países ocidentais goza de uma estabilidade democrática. Ele pensa não nesses romances de botequim, os fast-book: seu horizonte é o grande romance, o qual ficou no século passado, como se nossa época não fosse capaz de criar grandes obras. De Kafka a Samuel Beckett, havia já na produção romanesca do século XX a percepção do chamado “fim do romance” que o crítico italiano retoma. E a causa não é a democracia em si, mas a indústria cultural que veio em seu bojo, o que coloca o autor na esteira crítica dos autores da envergadura de um Adorno. Curiosamente, nunca se escreveu tantos romances no mundo, mas sem que nenhum tenha o peso dos grandes autores do passado. Assim é que se cria uma falsa festa do romance (Kundera a chamaria de A festa da insignificância), um otimismo vazio e barato, também ele, afirmamos, engendrado pela indústria:

“O otimismo atual sobre a sorte do romance […] é na verdade um otimismo fictício, recente, provavelmente efêmero e sem muita justificativa [..] é parte daquela disseminada democracia cultural, falsamente hipócrita, que deve oferecer a todos a possibilidade ou a ilusão de ser tudo: até romancistas. Ou seja, a democracia mata o romance ao incentivá-lo; ou o incentiva tanto assim porque sabe que o matou”.

Daí o título desse pequeno e grande ensaio: Não incentivem o romance.

Mas é pensando justamente nisso que enxergamos no gênero um caminho verdadeiro para a democracia plena. Justamente graças ao esvaziamento pela indústria cultural que vemos nele um valor a ser defendido, porque a indústria caminha para a superficialidade, ao passo que o romance caminha sempre para a profundidade, essa profundidade que hoje compete com a rapidez e a superficialidade de outros gêneros atuais e que colocam o romance na periferia da organização simbólica no ocidente.

Há muitas mídias menos dispendiosas do que o romance. Do cinema à telenovela, do Facebook até as séries. Fontes ficcionais que concorrem com o romance, muito mais fáceis de serem consumidas, muito mais rápidas e muito mais fáceis de serem distribuídas. Com elas, o coração do sistema e da Indústria: o marketing. O romance, por sua vez, é dispendioso, pesado, lento, não possui imagens coloridas e sons metálicos, exige um esforço às vezes sobre-humano de concentração, exige tempo e local apropriado e não nos conecta com a rede mundial – embora nos conecte com a humanidade. Exige demais dos seus leitores e abala nosso chão, muitas vezes é difícil e necessita que o leitor tenha um alto nível de leitura. É como se pertencesse a outra dimensão espaço-temporal, ou ao que Walter Benjamin chamaria de outro ritmo de produção. Como competir com os demais organizadores simbólicos, se além de terem nascido com a chamada modernidade líquida, são muito mais apropriados a ela e aos seus valores?

Mas comparemos o romance com essas mídias e teremos a dimensão do seu tamanho. O “colocar em cena” de que somente o romance é capaz é o verdadeiro exercício de empatia e aceitação do discurso alheio – é, portanto, antifascista. Esse colocar em cena nos aproxima das coisas e dos acontecimentos. A notícia, por exemplo, é um gênero muito débil se a colocarmos como eixo de comparação. Um incêndio aparecerá na notícia da maneira mais fria e distante dos leitores, mesmo nas mãos do melhor jornalista. Saberemos o tempo e o lugar em que ocorreu, quantas pessoas foram envolvidas. Às vezes, um depoimento com a voz de alguém, algumas descrições pretensiosas, mas sempre sem vida e sem espírito.

Já com o romance, ouviremos o crepitar, sentiremos o cheiro da fumaça escura saindo do cômodo, o desespero do acontecimento não esperado, a expectativa da morte, o destino anunciando a desgraça. A estrutura monstruosa de madeira seca e podre, como um estopim, exsudando fumaça pelas fendas das tábuas […] atulhada de ruídos […] alguma coisa que escondia, alguma coisa que rugia, humana, pois o rugido era humano […]. Posso ler a notícia da mulher pobre que, num ato de desespero, joga o próprio filho no rio, posso até entendê-la, sentir pena, dizer que a compreendo; posso, inclusive, odiá-la, não compreender seu ato bárbaro, porque o mundo não deveria ser assim. Mas quando leio um romance, como um Dickens por exemplo, eis que, sem me dar conta, flagro-me pegando uma criança no colo e, tremendo, começo a olhar para o rio lanoso que passa por sob a ponte.

Ser outro, viver vidas que não a nossa é a maior contribuição do romance para a democracia. É por isso que esse gênero sempre é censurado pelo totalitarismo, ou então esvaziado pelo sistema capitalista, pois como nos demonstra Lossa, esse viver outra vida faz com que não nos contentemos mais com a nossa vida apagada, com nossa comida rançosa, com nossa vida sem liberdade e sem acontecimentos:

A ficção é o sucedâneo transitório da vida. O regresso à realidade é sempre um empobrecimento brutal: a comprovação de que somos menores do que havíamos sonhado. O que quer dizer que, uma vez que aplacam transitoriamente a insatisfação humana, as ficções também as instigam (Vargas Lossa)

Depois dos atentados ao Charlie Hebdo, os franceses voltaram a ler romances. Autores canônicos franceses votaram a ser consultados. No mínimo, isso reforça a tese de que os valores ocidentais, entre os quais a democracia se encontra, têm no romance o seu relicário.


Thiago Teixeira, formado em letras pela Universidade de São Paulo. Mantém o blog “Escritos sobre escritos“.
Publicado por:Philos

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