Enquanto a luz durar“, o novo livro do artista Susano Correia chega em um momento de forte ascensão do autor no cenário artístico contemporâneo. Viralizado na Internet, com material disponível até mesmo em NFT, e consagrado como o artista com o maior número de obras tatuadas em pessoas no Brasil, Susano resgata de maneira contemplativa os últimos nove anos da carreira, em um livro 100% dedicado à pintura, reunindo os principais trabalhos desse período. O projeto gráfico da obra e a organização da publicação foram pensados e desenvolvidos a quatro mãos, em parceria com Roberto Klaumann. Quando fechado, é um bloco maciço de pura escuridão, cuja capa é ilustrada pela pintura que dá nome ao próprio livro, um homem-vela a meio caminho de tudo o que existe, como uma metáfora da finitude e do percurso que é ser. Quando aberto, as pinturas muito coloridas iluminam o olhar de quem vê. Para ele:

“Se as minhas pinturas puderem, quem sabe, em algum lugar, algum dia, inspirar uma pessoa que cisma solitária, estarei satisfeito desde já, porque acredito na vida, e, por mais difícil que a vida seja, é preciso passar a chama acesa adiante.”

Aperto no fundo do peito, obra Susano Correia.

Na Philos você lê com exclusividade o Prefácio do livro “Enquanto a luz durar“, assinado pelo pesquisador Flávio Ricardo Vassoler:

preâmbulo dantesco

Ao percorrer a floresta densa e lúgubre da obra Enquanto a luz durar, de autoria do pintor, desenhista, escritor e poeta catarinense Susano Correia – uma floresta multiforme que engloba em si (e entre seus escombros) biomas contraditórios da nossa condição, tais como o deserto da angústia e o mar revolto da saudade e da sede de si mesmo –, fico com a impressão de que a trajetória do livro (sua via crucis, por assim dizer) dialoga com a busca de redenção do eu-lírico de A divina comédia, a obra-prima do poeta florentino Dante Alighieri que, em enorme medida – quer nós o queiramos, quer não –, emoldura o nosso imaginário.

Dos círculos mais sombrios do Inferno, em meio aos quais Dante reconhece todas e cada uma das mazelas humanas; em travessia pela nesga mutilada de luz do Purgatório (a noite é sempre mais obscura antes do amanhecer); até a vontade tangível de sentido, comunhão e amor do Paraíso, o poeta florentino estrutura um caminho que leva as personagens (e nós, leitores e leitoras) da dor mais profunda do niilismo e da descrença à vontade de que, em algum momento, com uma nova vida, nós consigamos vislumbrar (e viver!) algo radicalmente diferente daquilo que a humanidade não humanizada e a história a marchar com coturnos nos vêm legando.

Neste prefácio, proporei a vocês, espectadores e espectadoras, leitoras e leitores da obra de Susano Correia, um itinerário interpretativo que estabeleça um diálogo com o fio narrativo tênue e subliminar de Enquanto a luz durar – ora um fio d’água hesitante e acossado como um córrego, ora um oceano caudaloso de dor e ímpeto de reconciliação e redenção.

Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais

Desde seu início, Enquanto a luz durar nos apresenta o ser humano como um paradoxo bípede: queremos voar, mas não temos asas – em um momento bastante melancólico do livro, lemos que, “pior do que não ter duas asas é ter apenas uma”; queremos amar, mas nosso coração foi sitiado pelo narcisismo e pela incapacidade de comunhão. É assim que, num dos primeiros diálogos entre palavra e imagem que constituem o livro, vemos e lemos, à página 2, um pássaro canoro (um pintassilgo?) que, com asas de libélula, se vê atado à figura humana que aparece em quase todas as tomadas da obra: um homem magro e quase sempre tristonho, com o topo da cabeça a crescer como a metade de um losango que se afunila – é como se o cérebro da personagem (a razão ou a falta dela?) fosse confrontado, desde o princípio, com o paradoxo que o artista sente: se a imaginação rouba as asas de Ícaro e o faz voar, a vida apequenada pela frieza e pela indiferença do ser humano e de sua sociedade fazem o artista sofrer, enquanto a luz durar, com a limitação de seus afetos. Então, colocando de ponta-cabeça o título paradoxal do romance A insustentável leveza do ser, do escritor tcheco Milan Kundera, Susano abre seu livro como quem, com uma faca, rasga a nascente de um rio contra a pele como as duas margens de uma ferida que já não poderão se agarrar uma à outra: o homem que limita o pássaro e o pássaro que tenta dar asas ao homem representam “a insustentável leveza do não-ser”.

O ser (a vida) e o não-ser (a morte) duelam ao longo da obra desde o título: como Enquanto a luz durar entrevê a vida como os grãos de areia que a garganta da ampulheta só faz engolir, o leitor e a leitora descobrem, à página 12, uma vela com o rosto da personagem agônica. A princípio, o pavio da vela está no alto (no cume!) do cocuruto triangular. A passagem do tempo, no entanto, consome a cera da vida (nossos dias como grãos de areia) até que o fogo derreta nosso cérebro, o centro de todas as nossas ilusões. Não à toa, do portal do Inferno, Dante Alighieri fez constar a seguinte máxima: “Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais”.

O Inferno de Susano Correia
como uma anticaixinha de música

Se, à página 24, deparamos com a metamorfose do cocuruto triangular da personagem em uma torre, de modo a depreendermos, com muita tristeza, que se trata de uma fuga de tal homem “para longe de seu próprio coração” – quem poderá precisar (e julgar…) o que já sofreram aquele e aquela que choram por desilusão? –, à página 7 encontramos, a meu ver, um dos momentos de maior dureza de Enquanto a luz durar.

Mais uma vitória do coração, sem razão, obra Susano Correia.
Mais uma vitória do coração, sem razão, obra Susano Correia.

Sentado numa cadeira de rodas, um senhor decrépito (o avô da personagem principal ou o retrato do protagonista quando velho?) parece ter os olhos ilhados pela mais completa desesperança. É como se, diante dele, só houvesse a morte – ocorre que o senhor, tomado pela sensaboria, não parece ter forças sequer para clamar pelo fim de sua vida.

Outrora triangular ou em forma de torre – “para longe de seu próprio coração” –, o cocuruto se vê transformado na corcova de um doloroso bico de papagaio, que mal sustenta uma cabeça, cuja consciência já não suporta viver. Então, nos damos conta de que o senhor prostrado segura uma gaiola, em cujo interior há um pássaro desenhado como se fosse uma sombra – teria Susano Correia retratado tal pássaro enjaulado como a expressão expressionista (uma fantasmagoria) da própria vontade de não-ser? Quando lemos, sob a imagem, o aforismo-só-lâmina “Cante para mim”, ficamos pensando se, mesmo à beira da morte (ou mesmo já morto sem que ainda o tivessem enterrado), o senhor não seria capaz de sadismo… Atado à cadeira de rodas, o senhor, ainda assim, pode segurar a gaiola (por quanto tempo mais?) e açoitar o pássaro (de si mesmo?): “Cante para mim”.

É como se, com o furor dantesco, o Inferno de Susano Correia tivesse composto, em seu momento mais doloroso e desalentador, uma anticaixinha de música: ao invés de haver uma manivela inanimada para reiterar a cançãozinha um sem-número de vezes, um pássaro fantasmagórico – um ser-vivo-para-a-morte – é açoitado para beliscar, com seu chilreio, um senhor que já não acredita estar vivo: “Cante para mim”.

O Purgatório: a luz ainda dura

Após nos conduzir pelos círculos mais infernais de suas reflexões pictóricas – como o espírito do poeta romano Virgílio a conduzir Dante Alighieri através das trevas –, Susano Correia começa a nos trazer o alento de um lusco-fusco de sentido (a vontade de redenção do vagalume?) como quem insinua que, enquanto a luz durar, é preciso continuar a continuar.

Assim, no Diário de um pintor (2020), obra em que Susano Correia reflete sobre as encruzilhadas de sentido (e da falta de sentido) para a vida, em estreito diálogo com suas tomadas de posições como artista, compreendemos como seus questionamentos se decantam como desenhos, pinceladas e aforismos. Vale a pena, então, ler e contemplar Enquanto a luz durar como uma extensão, isto é, como uma concretização, do projeto que o artista esboçara em seu diário.

Ao depararmos, à página 58 do Diário de um pintor, com o desenho de um “homem olhando com carinho para sua própria insignificância”, o prisma infernal da obra de Susano Correia nos leva a pensar sobre a insignificância da vida como mais uma agrura insuportável. Ademais, a menção ao “carinho” pode despontar como uma chicotada sobremaneira irônica contra a busca de refúgio no amor e na afeição. No entanto, o rosto vazio da personagem (vazio de significação, vazio de sentido, vazio como a vida) se transforma numa cumbuca, dentro da qual um pequeno eu contempla, como que a desembocar no desenho da página 36, um “homem tomando nota de suas contradições para se lembrar de esquecê-las”.

Neste momento, o ímpeto de Susano Correia parece decantar os ensinamentos de Friedrich Nietzsche, em seu ensaio sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, no qual o filósofo alemão sentencia que, por sermos seres finitos e conscientes de nossa própria finitude – em suma, seres-vivos-que-se-sabem-para-a-morte –, o esquecimento se torna uma ferramenta (uma estratégia!) fundamental para nossa reconciliação com alguns poucos momentos sublimes (ainda que efêmeros) na vida. O esquecimento, para o poeta francês Charles Baudelaire, é o pedido (a ordem!) para que nos embriaguemos; o esquecimento, para o paradoxalista catarinense Susano Correia, é, em seu Diário de um pintor, o “homem sentindo que é principalmente a parte que falta para compreender” (página 18): quando, novamente, deparamos com um rosto vazio, o desenho não se furta a nos apontar que os contornos faltantes do rosto se voltam para dentro do ser – não como quem nega a vida ou dela se esconde, mas como quem a procura, como quem insiste em procurá-la.

Com esta chave de leitura que lhes proponho ao desfolhar o labirinto poético de Enquanto a luz durar, podemos discernir, entre os escombros do Purgatório de Susano Correia, um caminho tortuoso em busca de uma (im)possível redenção imanente e mundana. Se a imagem do purgatório nos remete, antes de mais nada, àquilo que purga, purifica e expia, além de se tratar, dantesca e teologicamente, do lugar onde as almas que cometeram pecados acabam de purgar suas faltas, antes de rumarem ao paraíso, conseguimos encontrar um verdadeiro fio da meada entre uma série de desenhos e seus respectivos aforismos, que parecem desaguar uns nos outros, como se tentassem se abraçar.

É assim que, à página 56 de Enquanto a luz durar, “o peso de estar naquilo que se é”, com um homem soerguendo uma enorme e pesada cabeça pensante, nos leva à página 22, em que a razão humana se transforma na bússola de um poço (sem fundo?), pois estamos diante de um “homem com profunda sede de si”. Chegamos, então, à página 26, na qual a personagem, que cindira o próprio crânio com um martelo, descobre na fenda de sua razão não o vazio do niilismo, mas o prenúncio de um girassol (a salvação amarela de Van Gogh?) como a luz que, mesmo frágil e trêmula, insiste em nortear e afagar. Não à toa, à página 55, um coração do tamanho do pulso que segura o pincel, como o útero do sentido, nos faz testemunhar “o nascimento do homem novo, de seu próprio coração partido”. Se auscultarmos o batimento de tal coração a óleo, conseguiremos entreouvir o poeta russo Vladímir Maiakóvski a recitar os seguintes versos de seu poema Adultos:

“nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
o coração tem domicílio
no peito.

comigo
a anatomia ficou louca.
sou todo coração –
em todas as partes palpita”.

Torna-se crível e belo, então, que, à página 28, uma rosa nasça no antebraço esquerdo da personagem – o coração costuma pulsar no lado esquerdo do peito, não? –, de modo a receber, a partir do purgatório de tal florescimento, o seguinte aforismo: “homem errando um lindo gesto de amor, por pouco”.

Prestes a encontrar Beatriz, a musa de Dante Alighieri que o companha pelos círculos celestiais do (improvável?) Paraíso, Susano Correia parece arrematar seu Purgatório como quem caminha entre os seguintes escombros da estória Worstward Ho, do escritor e dramaturgo irlandês Samuel Beckett: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”.

Trago no coração uma saudade atrás da outra, obra Susano Correia.
Trago no coração uma saudade atrás da outra, obra Susano Correia.

Até quanto a luz durará?
O Paraíso (im)possível de Susano Correia

O subtítulo do Diário de um pintor nos revela que, para Susano Correia, a busca pelo sentido da vida (que nos vai exaurir) encontra guarida na imagem da “penúltima pétala”: bem me quer, mal me quer; bem me quer, mal me quer… A penúltima pétala, frágil e bela tentativa estético-existencial antes do último suspiro.

O Paraíso (improvável?) de Enquanto a luz durar não desponta como um Éden de luz sem quaisquer sombras ou agruras. Calejada e sem idílios, a sabedoria dos desenhos e aforismos do tataraneto catarinense de Dante Alighieri faz com que, como o céu nublado de uma certa redenção, a dor seja reconfigurada não como êxtase, mas como o queloide e a cicatriz daquele e daquela que, munidos do archote da luz que ainda dura, continuam a continuar.

Susano Correia pelas lentes de Fran Bona.

É assim que, da página 15 para a página 27, o “homem a bordo de sua própria solidão” encontra um porto de memórias e frustrações, ímpetos e saudade, de modo a atracar o barquinho de papel de suas quimeras como o “homem em sua solidão superpovoada”. (Aquele e aquela que não conseguem ficar sós não suportam, antes de mais nada, a companhia de si mesmos.) É assim que, da página 21 para a página 17, o “homem com um naufrágio no peito” nos leva da personagem com o coração sitiado pela carcaça à deriva de uma caravela para o “homem ao mar de uma saudade”, que, arrolhado em uma garrafa lançada ao mar revolto da vida, perfaz a trajetória do pergaminho (e dos desenhos) que procura(m) alguém que o(s) possa ler e interpretar – eis o circuito artístico-reflexivo que, a partir do Diário de um pintor e deste Enquanto a luz durar, constrói uma ponte entre o desenhista, escritor e poeta Susano Correia e os leitores e leitoras, com a expectativa de que a garrafa arrolhada deste livro possa ser aberta e ressignificada por nós. É assim que, respectivamente, à página 32 e à página 33, o “homem morando onde não lhe cabe mais” e “o homem namorando nas ruínas de um outro amor” podem, por meio de um processo de purgação em brasa – o fogo queima, mas também ilumina e acalenta –, descobrir que os escombros de uma casa e de um amor não levam apenas à retroatividade da saudade, já que podem nos fornecer os materiais (a sabedoria melancólica, mas, ainda assim, sábia) para a tentativa de construção de uma nova casa (não sem fissuras) e de um novo (e trôpego) amor. Por isso, se este prefácio tiver desvelado caminhos efetivamente subliminares do labirinto poético proposto pela mundana comédia de Susano Correia, a síntese de Enquanto a luz durar, como nossa penúltima pétala, pode ser encontrada à página 41, com o “homem pescando os pedaços de si espalhados pela memória”. Aquilo a que chamamos eu, então, despontará não como uma catedral sólida, altiva e portentosa, mas como um descampado em que pegadas e escombros se confundem. Dessa forma, como quem continua a continuar para criar, Susano Correia assim responde ao psicanalista francês Jacques Lacan, que indaga: o que é que vamos fazer com o que fizeram de nós?

– Enquanto a luz durar – com profunda sede de si, Susano manuseia o girassol de sua arte (bem me quer, mal me quer; bem me quer, mal me quer) –, eu vou criar.

Susano Correia

Com mais de 1 milhão de seguidores em suas redes sociais, Susano tem hoje seu trabalho reconhecido por milhares de brasileiros que não tinham o hábito de apreciar a arte como forma de materializar seus sentimentos. Assim, suas obras vão muito além da percepção individual das pessoas e passam a ser, também, um movimento que democratiza o acesso à arte. Para ele:

“Busco que minhas obras sejam vistas por todas as vias. Tenho quatro livros publicados, fiz diversas exposições e desde sempre faço publicações também na internet – desde os tempos de blogs em 2008. Trabalho com significantes universais e acessíveis”.

Mais do que simples expressão, a arte para Susano Correia é um delicado canal de interação e um elemento vital para o desenvolvimento humano. Natural de Florianópolis e residente em São Paulo, seu trabalho é permeado pela preocupação didática de significar para as pessoas. Com inspirações em diversos movimentos artísticos, além da literatura, psicanálise, filosofia e na música, busca fazer cada um refletir sobre o cotidiano, seja nas telas, no papel, em gravuras e no digital, com obras que transcendem a individualidade e traduzem sentimentos profundos presentes em todos aqueles seres humanos que desejam olhar para si.

Foda-se, obra Susano Correia.
Foda-se, obra Susano Correia.

Flávio Ricardo Vassoler, escritor, professor, youtuber e nômade, fiel como os pássaros migratórios, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo talião (nVersos, 2013); Tiro de misericórdia (nVersos, 2014); Dostoiévski e a dialética: fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018); Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019); e Metamorfoses, os anos de aprendizagem de Ricardo V. e seu pai (Nômade, fiel como os pássaros migratórios, 2021). Em outubro de 2020, fundou a Universidade Virtual do Vassoler, pela qual ministra cursos online, mensalmente, sobre grandes clássicos da literatura.

Publicado por:Philos

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