– Alô!
– Eu quero falar com Diana Marini.
– É ela. Atendi o telefone no escuro da agência deserta, estava de saída para um coquetel. Estivera fazendo hora no toalete com minha caixa de maquiagem e eu demoro uns dois anos só no setor cílios. É um sacrifício quando os pelos grudam e se tem de separá-los com a ponta do alfinete, um por um. Eu já estava atrasada, eram sete e meia quando atendi o telefone no escuro. Há uma ordem peremptória pregada ao lado do relógio de ponto para quem sair após o expediente apagar as luzes, porque o dono da agência precisa colaborar na campanha de economia de consumo de energia, enquanto o dia inteiro só faz atender clientes com o objetivo exclusivo de induzir o pessoal a consumir cada vez mais bobagens. Se ele estivesse ali no meu lugar ia saber como é terrível falar ao telefone no escuro, no ar espesso há sempre um ataque de fera ou monstro enquanto permanecemos amarrados a um fio de voz, talvez fluorescente do outro lado e seria absurdo pedir socorro, pensariam que somos loucos e desligariam imediatamente e também não há nada a fazer se o ataque for consumado e a pata nos atingir na treva, cortando a ligação, aliás por um fio, logo eu disse:
– Um momento. Estou no escuro. Não sei falar no escuro. Espere, vou acender a luz.
Trecho do conto Tigresa, que integra o livro Diana Caçadora, da escritora paulistana Marcia Denser.
É sempre um prazer restabelecer contato com as amazonas urbanas de Marcia Denser ao reler as obras “Diana Caçadora” e “Tango Fantasma, dois marcos da nossa literatura em relação à representação da mulher contemporânea, exemplos que casam perfeitamente com a questão que trago aqui, sobre os papéis destinados ao feminino na literatura brasileira de hoje e de sempre.
Nesse fio que começou a ser tecido há tempos, é evidente a quantidade de poetas, prosadoras (e mulheres da escrita sem classificação exata) dispostas a romperem os clichês e lugares-comuns que nos cercam ao apresentarem ao mundo as mulheres-novas contidas em seus projetos literários.
E há muito a ser feito. Seja por parte do público, da crítica, do mercado ou das “autoridades” do segmento, ainda há muita resistência, algo que, infelizmente, não é uma surpresa. Numa avaliação rápida e informal em relação a aquilo que, principalmente, nos é questionado, solicitado ou permitido, é fácil deduzir: ainda se espera que a representação da mulher na literatura permaneça vinculada a alguns poucos papeis (assim na vida como nos livros, ou vice-versa), numa ciranda de repetições ad infinitum. Dos que me lembro neste momento:
A puta/ a desejosa por sexo (geralmente heterossexual);
A mãe (que trabalha/ que não trabalha);
A profissional obstinada (que ainda não encontrou seu grande amor);
A mulher avulsa/ a desacreditada/ a sem filhos;
A rica;
A pobre;
A adolescente rebelde e alienada;
(Alguns outros poucos, a completar: _____________________________).
Obviamente que tal limitação dos papéis que nos dizem respeito se deve à própria limitação de ordem social e sua consequente reprodução de natureza semiconsciente à qual estamos sujeitas, afinal, a literatura é um retrato do que se experiencia diariamente, é o registro daquilo que nos é oferecido em termos de expressão e de vivência no mundo.
A despeito disso tudo, temos escritoras brasileiras a compor, com extrema competência e originalidade, personagens vinculadas a vários dos papéis citados acima (além de outros tidos como “previsíveis”), até como, a meu ver, uma forma de afronta e de subversão desse entendimento limitado em relação ao que somos e ao que podemos oferecer em termos de complexidade, simbologia e significados às nossas personagens. Dessa forma, a reflexão aqui trazida não diz respeito a uma proposta da exclusão ou de diminuição das representações das mulheres mais conhecidas ou populares, mas de uma abertura de visão e cultivo do terreno para que personagens outras/novas/impensadas passem a ser passíveis de representação nessa nossa realidade de natureza mutável, infinita e nada previsível.
É importante que nós, criadoras das histórias que determinam as nossas narrativas, incorporemos essas fusões hilstianas, essas Beauvoirs dos guetos, essas medusas do neon assexuadas, as cyborgues maternais dos anos 20 de nosso século. Afinal, além de resumidas a zero (ou a quase isso), as mulheres-personagens que provocam o rompimento dos papéis sociais fixos não são fruto apenas da fabulação de algumas poucas mentes mais arrojadas ou rebeldes, mas a personificação desse alguém que não mais se enquadra nas classificações de caráter aceitável, passadas de pai para filho nos tradicionais almoços de domingo ou no papo entre comparsas nos bares mais hipsters das capitais.
Pensemos nos novos meios de expressão estética e sexual, nas novas constituições do pensamento. Habitamos múltiplas frequências, não há razão para estarmos atreladas a apenas uma, duas ou três.
Em O Segundo Sexo, ao analisar a presença do mito feminino na obra do escritor Henry de Montherlant, Simone de Beauvoir apresenta uma visão passível de ser aplicada ao que ainda temos e vemos quanto à limitação de espaço e de entendimento daquilo que é possível e esperado ao ser-mulher na vida e, por consequência, na literatura:
“(…) a mulher é mulher por falta de virilidade; é o destino que todo indivíduo do sexo feminino deve suportar sem poder modificá-lo. Aquela que pretende escapar a esse destino situa-se no mais baixo degrau da escala humana; não consegue tornar-se homem e renuncia a ser mulher; não passa de uma caricatura irrisória, uma aparência; o fato de ser um corpo e uma consciência não lhe confere nenhuma realidade”.
Esses corpos ignorados, não ocupantes de palavras que os legitimem, estão repletos de som e calor. São reais e existentes. Invisíveis, mas resistentes. Necessitados de representação em um mundo que a eles (ou melhor, a elas) nunca deu muita atenção ou respeitabilidade.
“Mas tais mulheres, CASO elas existiam, são uma minoria”. Essa frase já foi dita a mim por um “literato”. E sim, é sobre essa minoria que eu quero falar. Que de tão invisível, é tida como impossível. São criaturas que, para tantos, habitam, se muito, o reino do absurdo. Num livro então, são coisa esquisita de se ler e ter. Inaceitáveis.
E é aí que chegamos a outro fator a ser considerado. Já ouvi, de mais de uma pessoa do meio literário, que inúmeras escritoras não chegam a enviar os seus originais para as editoras pelo único fato de não se sentirem aptas ou capacitadas para desempenharem tal papel ou ofício.
Se, oras, temos algo tão sério enraizado na crença e no comportamento de escritoras que não conseguem considerar-se como tal, é muito natural que, para aquelas que deram um passo adiante rumo à “ousadia” de querer publicar, as representações ainda permaneçam, em muitos casos e por inúmeras pressões internas ou externas, fiéis a apenas aquilo que se crê como possível em termos de existência, parte do rol limitadíssimo de papéis disponíveis seja na vida familiar, profissional, no cotidiano religioso, amoroso e sexual, apenas para citar alguns.
Ter uma editora que esteja ao lado das autoras, disposta a “peitar” personagens que vão além daquilo que se considera como esperado, apropriado ou possível, não necessariamente é um padrão. Assim, fica por nossa conta dar espaço para que as intersecções da vida (ou dos espaços destinados à mulher, que querem nos fazer crer serem estanques), habitem nossas páginas, o que, quero crer, fatalmente levará à reavaliação de conceitos-leis e ao reconhecimento da dinâmica da vida, aqui expressa na complexidade e no dinamismo do ser-mulher além dos rótulos – ou, pelo menos, não exclusivamente aprisionada a eles.
Fazer literatura é correr o risco. Cá entre nós, nunca vi algo tão feminino.
Cristina Judar (São Paulo, 1971). É escritora e jornalista, paulistana, autora das HQs “Lina” (Editora Estação Liberdade) “Vermelho, Vivo” (Devir), do livro de contos “Roteiros para uma Vida Curta” e do romance “Oito do Sete” (ambos publicados pela editora Reformatório). Também é autora do livro-arte ‘Luminescências’, criado em parceria com a artista visual Paula Mastroberti, e do “Questions For a Live Writing”, projeto de prosa poética desenvolvido na Queen Mary University of London. É uma das editoras da revista de arte e cultura LGBT “Reversa Magazine”.