A poesia rege festivais e celebrações épicas desde sua ancestralidade helênica e permanece como força, manifestação e efervescência cultural na cena contemporânea de maneira a reinventar-se em roupagens performáticas, digitais e virtuais, hibridizada com outras artes, multifacetada em videoinstalações, em projeções nos espetáculos de teatro e dança, nos palcos musicais ou na batalha de rappers. Uma arte que encanta, seduz, desafia e diverte por seu extrato lúdico, pois como afirmou Huizinga (2004, p.136), a poesia “nasceu durante o jogo e enquanto jogo” e “sua origem está inseparavelmente ligada aos princípios da canção e da dança, os quais, por sua vez, fazem parte da imemorial função do jogo” (op.cit.p.157), e como jogo, enquanto uma atividade que se estabelece por meio de determinados limites espaço-temporais, seguindo ordens e regras específicas, permeado por um sentido de exaltação e tensão, transita no território do arrebatamento e entusiasmo. Da mesma forma, a poesia mantém sua ludicidade através da estrutura rítmica, das possibilidades sonoras, imagéticas e, sobretudo, de seu caráter metafórico. Como enfatiza o autor de Homo ludens “o que a linguagem poética faz é essencialmente jogar com as palavras. “Ordena-as de maneira harmoniosa, e injeta mistério em cada uma delas, de modo tal que cada imagem passa a encerrar a solução de um enigma” (HUIZINGA,2004,149). Segundo Huizinga (2004, p.133), “a poiesis é uma função lúdica, pois ela está para além da seriedade, naquele plano mais primitivo e originário a que pertencem a criança, o selvagem e o visionário, na região do sonho, do encantamento, do êxtase, do riso”. A poesia coloca em jogo, de forma não hierarquizante ou predeterminada, a imaginação, a memória, a intuição, a emoção, a sensibilidade, a sedução, o humor, e, para além da compreensão racional, evoca uma reação estética no ouvinte/leitor.
Em sua arte, os poetas versam sobre dramas, amores, revoltas e conquistas, temas retomados através dos séculos, desde a Antiguidade, e que, no entanto, são sempre inaugurais devido não somente ao contexto em que são retomados mas, sobretudo, ao fato de que a linguagem é viva e de que o poeta é a voz pulsante de uma comunidade. Agamben (2009, p.60), ao discutir as fraturas e obscuridades do contemporâneo, ressalta o protagonismo do poeta na interpretação de seu tempo, pois é “aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do século-fera, soldar com seu sangue o dorso quebrado de seu tempo”. Para o filósofo italiano, o poeta antevê o futuro, pois fixa o olhar no seu tempo, enxergando a obscuridade do presente, neutralizando suas luzes e buscando descobrir em suas trevas “o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes”; com seu “sangue” convertido em poesia o poeta pode contar sua época e suturar as fraturas de seu tempo. Com a poesia, os poetas revelam o humano, subvertendo a linguagem, que é seu instrumento e aliada, e, por meio dela, como versa Gullar, “o poeta empresta / às coisas / sua voz”, que é também a voz de um tempo e de uma comunidade. O poeta e ensaísta mexicano Otávio Paz (2012, p.13) defende que “cada poeta é um pulsar no rio da linguagem” e, por isso, “quando um poeta adquire um estilo, um jeito, deixa de ser poeta e se transforma em construtor de artefatos literários” (2012, p.25). Ou seja, os poetas, ao concederem à linguagem um tratamento estético, injetando nas palavras mistério e arte, como propõe Huizinga, criam algo novo, que está além da linguagem. Paz (2012, p.53) afirma que “o poeta não é um homem rico em palavras mortas, mas em vozes vivas”, e, por isso, traz as muitas vozes inscritas na sociedade, fazendo emergir a polifonia de que nos fala Bakhtin. Segundo Paz:

Texto adaptado do capítulo III da Tese “A poesia em territórios improváveis: jovens de periferia em cena”. PPGE-UFRJ; Rio de Janeiro, 2017.

A linguagem do poeta é a linguagem de sua comunidade, seja esta qual for. Entre uma e outra se estabelece um jogo recíproco de influências, um sistema de vasos comunicantes. O poema se alimenta da linguagem viva de uma comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, ou seja, de suas tendências mais secretas e poderosas. (…) O poema é mediação entre sociedade e aquilo que a funda. Sem Homero, o povo grego não seria o que foi. O poema nos revela o que somos e nos convida a ser o que somos (PAZ, 2012, p.48-49).

A leitura de um poema possibilita ao leitor uma experiência que o insere no processo de criação, já que, como toda obra literária, ele é uma obra inacabada, complementando-se, portanto, através de quem o lê; nesse gesto/ato de leitura o leitor recria o poema lido, sentindo-o, vivendo-o, fruindo-o, pois, assim como o idioma, o poema é algo vivo, pulsante, em movimento, e sua linguagem, ao extrapolar a sintaxe e o dicionário, provoca múltiplas interpretações, sensações, experimentações. Dessa maneira, o poema requer um tempo dilatado de imersão, concentração, contemplação, o que, por sua vez, pode provocar o redirecionamento do olhar para se ver, ler o mundo. Segundo o poeta e filósofo Antonio Cicero (2014, p. 382), outras expressões artísticas talvez não exijam o mesmo tempo e nível de concentração para sua apreciação – uma música, uma pintura, uma escultura, uma obra arquitetônica pode ser vista en passant, ainda que não mergulhemos profundamente em sua unidade forma/conteúdo. Já o poema exige uma imersão mais densa no corpo do texto para que seus elementos possam capturar o leitor/ouvinte. Em suma, é preciso olhos e ouvidos atentos e lentes dilatadas para ler, ouvir, fruir um poema, pois se trata de um gênero que desafia o leitor ao apresentar uma gama de correlações improváveis e sentidos imprevisíveis na linguagem instrumental, seja via recursos sonoros e gráficos, seja via figuras de linguagem. No percurso da leitura de um poema, o leitor precisa realizar uma estratigrafia nas diversas camadas que os versos trazem, percorrendo suas nuances sonoras, imagéticas, conceituais, para que se complete a circularidade do ler, sentir, fruir o poema. Por promover um jogo de múltiplos sentidos é possível afirmar, como Cademartori (2009, p.104), que “a poesia desarma a maneira convencional de perceber o mundo, fazendo o leitor ouvinte descobrir outros possíveis aspectos dele”.
Cícero, em seu ensaio Poesia e Filosofia no livro Finalidades sem fim (2005, p.106), destaca que no poema, enquanto “locução poema”, não se separam os significados dos significantes, ou seja, “aquilo que o poema diz é inseparável do seu próprio ser” (CICERO, 2005, p.134) e que, sobretudo, nele não se separam forma e conteúdo – como também afirma Bakhtin (2006) a respeito da arte, em geral –, pois “a forma se identifica imediatamente com a materialidade sonora ou gráfica do poema” e, por isso, o que os poemas dizem não pode/deve ser separado do seu modo de dizê-lo, ou seja, não pode ser dito de outra forma, o que impossibilitará paráfrases para alcançar o que diz um poema; “na condição de poema, o que ele diz sobre alguma coisa não é um fim, mas apenas um meio” (CICERO,2014,p.171). O poeta e filósofo Cícero afirma ainda que “com a linguagem, o poeta produz poemas, isto é, objetos linguísticos cujo sentido primordial não é funcionarem como meios para o conhecimento e/ou a comunicação, mas serem fruídos como obras de arte, isto é, como fins em si” (CICERO, 2014, p.374). Dessa maneira, o poema cumpre uma função estética que, por sua vez, provoca uma apreensão estética do ser:

Quando se lê um poema, não se põe entre parênteses a política, por exemplo, tal como nela se manifesta. O que ocorre é que a política, não passando de um dos componentes através dos quais a obra é considerada, não é o único nem necessariamente o principal a determinar seu valor. A obra é mediatizada por todos os seus demais componentes, que, por sua vez são por ela mediatizados. A apreensão estética do ser significa uma disponibilidade tal às manifestações do ser que as distinções utilitárias estabelecidas pelo entendimento, embora não sejam anuladas, deixam de ter a última – ou a única – palavra (CICERO, 2014, p.373).

Ou seja, na leitura de um poema a apreensão estética do ser se dá por meio da apreensão de todos os seus componentes para além da forma fixa. Nesse caso, a apreensão estética do ser acontece na apreensão da interpenetração entre significante, significado e sentido que ocorre em um poema. A produção de sentidos se dá no mergulho nos versos tecidos em palavras, imagens, metáforas, metonímias, ritmos, pausas, espaços, alusões, sugestões… Nesse percurso, a apreciação de um poema escrito pode ser potencializada pela leitura em voz alta, de maneira que o leitor confunda sua própria voz com a voz do poema. Como propõe Cicero, uma leitura para dentro e não para fora:

Ao ler um poema dessa maneira, o tornamos nosso: fazemos nossas as suas palavras, no sentido de que pensamos com elas e em torno delas, como se fossem nossas. A nossa subjetividade se confunde desse modo, em grande medida, com a objetividade da obra de arte que é o poema (CICERO, 2014, p. 377).

Nesse sentido, o dizer um poema em voz alta convoca o leitor a uma experimentação cautelosa e demorada e, consequentemente, mais densa e intensa daquilo que é dito/lido, o que, por sua vez, requer um tempo dilatado e uma maior disponibilidade de quem lê para o alcance do que aqui chamamos de apreensão estética – isto é, o subverter e transcender a linguagem cotidiana, instrumental, para alcançar o poético.
Ora, diante de um mundo extremamente veloz, onde reinam acirradas disputas regidas pelo capital, um mundo volátil em que as informações mais contundentes ou novidades banais são processadas e publicadas em tempo real, em que o digital invade vidas e espaços de convívio, em que o compartilhar algo quase sempre se dá na esfera virtual, a apreensão instrumental da realidade rivaliza, permanentemente, com a apreensão estética do ser. E tal rivalidade provoca algumas indagações importantes: há espaço para a poesia na cena contemporânea? Existe, na atualidade, tempo para a apreciação de um poema? Há escuta para a voz do poeta, que é também a voz de uma comunidade e, portanto, polifonia social? Em suma, precisamos da poesia, dos poemas, dos poetas no mundo contemporâneo?
É verdade que o fruir de um poema exige do ouvinte/leitor um tempo suspenso do mundo instrumental e que poucos se permitem mergulhar no espaço do poema – esta liga de forma e conteúdo – via apreensão estética, colocando-se à disposição do poema para sentir e pensar com ele e por meio dele com/em profundidade, e talvez, por isso, muitos questionem a importância e/ou o lugar da poesia no mundo atual, crivado pelas disputas contemporâneas já explicitadas anteriormente. Em defesa do território da poesia, evoco aqui, uma vez mais, o poeta e filósofo Antonio Cicero (2014, p.382):

Para fruir um poema, é preciso nele imergir. E como tal imersão não combina com a temporalidade acelerada no presente, muitos afirmam que a poesia simplesmente não tem lugar neste mundo. Pois bem, é exatamente por não se ajustar à temporalidade acelerada do presente que a poesia é necessária hoje. Afinal, a temporalidade acelerada corresponde à apreensão instrumental do ser. Assim, é bom que a poesia, longe de se ajustar a ela, relativize-a, uma vez que nos dá acesso a esse outro modo de apreensão do ser e do tempo – o estético – que enriquece imensamente a vida humana.

Para dimensionarmos a importância da poesia na atualidade, como defende Cicero, faz-se necessário também compreender a profunda relação entre poesia e história evidente nas considerações de Otávio Paz (2012, p. 191-192):

O poema, ser de palavras, vai além das palavras, e a história não esgota o sentido do poema; porém o poema não teria sentido – nem sequer existência – sem a história, sem a comunidade que o alimenta e à qual alimenta. As palavras do poeta, justamente por serem palavras, são suas e são dos outros. Por um lado são históricas: pertencem a um povo e a um momento da fala desse povo: são datadas. Por outro, são anteriores a qualquer data: são um começo absoluto. (…) Sem palavra comum não há poema; sem palavra poética, tampouco há sociedade, Estado, Igreja ou comunidade alguma. A palavra poética é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios: no sentido de construir um produto social e no de ser uma condição prévia à existência de toda sociedade.

E por ser a poesia a voz de uma comunidade, a linguagem que alimenta/sustenta o poema é a própria história, sendo ele a mediação e revelação de experiências que transcendem o tempo linear, cronológico, alcançando uma categoria temporal flutuante sempre com “avidez de presente”, como enuncia Paz (2012, p.194), e, por isso, precisa, hoje e sempre, estar na voz dos homens, entre os homens, se repetindo e se reinventando no mundo contemporâneo – tempo em que o intercâmbio de experiências anda tão escasso, como alerta Benjamin (1994). A força da poesia está, especialmente, em sua permanência – por ser também história – e em sua urgência – por ser tempo presente pulsante na voz do poeta que, ao falar de si e por si, fala também de nós: “revela o que somos e nos convoca a ser o que somos”. A esse respeito, reitera Paz (2012, p.193):

Ao contrário do que acontece com os axiomas dos matemáticos, as verdades dos físicos ou as ideias dos filósofos, o poema não abstrai a experiência: esse tempo está vivo, é um instante cheio de toda a sua particularidade irredutível e é perpetuadamente suscetível de se repetir em outro instante, de reengendrar-se e iluminar com sua luz novos instantes, novas experiências. (…) já não é passado nem futuro, mas presente. E essa virtude de ser presente para sempre, graças à qual o poema escapa da sucessão e da história, o amarra ainda mais inexoravelmente à história. Se é presente só existe neste agora e aqui de sua presença entre os homens, encarnar-se na história. Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa num tempo anterior a toda história, no princípio do princípio. Antes da história, mas não fora dela. Antes, por ser realidade arquetípica, impossível de datar, começo absoluto, tempo total e autossuficiente. Dentro da história – e mais, história – porque só vive encarnado, reengendrando-se, repetindo-se no instante da comunhão poética.

Portanto, diante de argumentos contundentes e igualmente líricos de poetas e pensadores contemporâneos, é possível sublinhar o protagonismo do poeta – de que nos fala Agamben – e a força e urgência da poesia em nosso tempo – defendidas por Paz e Cicero –, para, em dias fraturados e obscuros, por vezes escassos de experiências intercambiadas, em que reina a barbárie de atitudes, gestos, palavras, trazer à superfície a polifonia de diversas esferas sociais, como propõe Bakhtin. O poeta, com seu “dialeto” e sua capacidade de capturar o obscuro em meio às luzes do contemporâneo, revela as muitas vozes que pulsam em distintos territórios da sociedade, como declara Gullar (2004, p.453), Meu poema/ é um tumulto: /a fala/ que nele fala/ outras vozes/ arrasta em alarido./ estamos todos nós/ cheios de vozes/ que o mais das vezes/ mal cabem em nossa voz:
(…)
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
bastar apurar o ouvido


Hélen Queiroz (Rio de Janeiro, Brasil). Poeta, professora de História e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pesquisas na área de linguagem e literatura.

Publicado por:Philos

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