Lembro-me do dia em que “Titanic” fez sua estreia em Macaé – era ainda no belo Cine Clube, em 1998. O filme chegou nove meses depois do grande circuito, foi a primeira vez que saí de casa depois de meu acidente, lia Heidegger dia e noite. Também foi a primeira vez que vi uma fila de operários do mar comprando pipocas e deixando seus barcos dormirem. As freiras também vieram, mas seus hábitos não. Tinha gente que descobriu o corpo naquele dia e outros que já haviam consumido cinco ingressos – em vila de pescadores, a diversão, muitas vezes, é se tornar um mentiroso genial ou um delator premiado. Atrás de mim, havia dois guris de uns doze anos que contavam cada cena detalhadamente, antecipadamente – ainda não se dizia spoiler. Lembro-me quando um deles falou para o outro: “é agora, é agora, é agora que ele vai comer ela no banco de trás do carro” – moleque sacana aquele.
Ontem sonhei que era o Di Caprio, acordei hoje loiro e de barba falhada. Falei em inglês com minha mãe que não entendeu nada e fez cara como quem diz “coitado, pirou de vez”. Engraxei o sapato, pus o terno preto de festa, com a gravata borboleta, desci a escadaria e entrei num móvel – tocava “My heart will go on”. Sem perder tempo, fui para o banco de trás, empolgado. Mas a realidade não é cinema – quando ouvi a risada dos atores percebi que estava num Uber Pool, com mais dois chineses, comendo pastel e tirando foto do Cristo. Mas tá beleza! Um dia a gente dorme em Macaé e acorda no Rio; um dia é Roma, outro é amor. A vida é uma estrada de palíndromos. Um dia ainda encontro a minha Kate Winslet ou Hannah Arendt.
Paulo Emílio Azevêdo (Rio de Janeiro, 1975). Professor, Doutor pela PUC-Rio em Ciências Sociais, escritor, poeta e coreógrafo. Recebeu diversos prêmios, entre eles “Rumos Educação, Cultura e Arte” (2008/10) pelo Instituto Itaú Cultural e “Nada sobre nós sem nós” (2011-12) no âmbito da Escola Brasil/Ministério da Cultura para publicação do livro Notas sobre outros corpos possíveis (2014). Seu mais recente livro, O amor não nasce em muros (2016), tem prefácio assinado pelo editor chefe da Philos.
Um comentário sobre ldquo;Eu e meu Uber Titanic, por Paulo Emílio Azevêdo”