Aquela barriga quis me dizer alguma coisa. Era todo um discurso silencioso, um mistério a ser desvendado. No corpo feminino de quarenta anos, a barriga tinha vinte. Mas não era só isso. Nem toda menina de vinte anos tem uma barriga tão perfeita como aquela. Tratava-se de uma barriga construída, trabalhada. A conjunção perfeita entre bons genes e muita malhação. Pele perfeita, cor perfeita, textura perfeita e – ainda que eu não a tenha tocado – consistência perfeita.

Ela estava ali, diante de mim, exposta, orgulhosa como sua dona, que sentia prazer em me ver olhando-a, e que aceitou o elogio pela sua forma, de modo franco e confiante. Foram por esses pequenos olhares de admiração que ela tanto suara; é uma das recompensas pelo seu esforço diário. Ela anda ao redor da piscina como quem desfila, como quem venceu na vida. E sua barriga continua me dizendo algo ao ouvido, o palavreado sussurrado que ainda não captei, mas que não quer me deixar em paz.

Ela disse algo – não a barriga, a proprietária – que me ressoa aos ouvidos até agora. Algo como “as mulheres finalmente apreenderam a colocar medo nos homens”. Afirmou isso em alto e bom som, de modo natural, como se anunciasse uma verdade óbvia, mas uma que não se diz assim, de forma tão aberta. A dona da barriga me pareceu, subitamente, um oráculo anunciando a mudança dos tempos. Ela dizia, sem mesmo o saber, o quanto o conflito entre os sexos se tornou acirrado e o quanto esta luta se desenrola no terreno da imagem.

Fiquei me perguntando quanto dinheiro e suor haviam sido gastos naquela barriga. Sobretudo, se havia um ser humano por trás dela. E, não menos importante, se havia verdadeiros seres humanos apreciando-a. Se a velha reverência à forma não eram simplesmente estímulos biológicos antiquíssimos… Estímulos que necessitavam ser compreendidos como tais – e tão somente como tais – para que eu pudesse sustentar minha humanidade, para que eu pudesse ostentar minha suposta presença humana no mundo.

Eu sei: faço-me incompreensível. Mas a culpa é da barriga. A barriga que ficou em mim mesmo depois de ter-se ido. Como uma autoridade. Como uma lei imperiosa que eu nunca questiono e que ninguém, entre os tolos, questiona. Eu fiquei me perguntando se, para ter uma barriga como aquela, para acariciá-la, mimá-la, endeusá-la, eu não precisaria também, eu mesmo possuir uma igual. Digo, se a minha barriga não precisaria de reformas, dinheiro investido, suor gasto. Estaria eu apaixonado pela barriga como Selton Melo apaixonou-se por uma bunda no Cheiro do ralo?

É preciso ser belo para possuir o belo? Ou ser rico? Ou não ter barrigas? Lembrei-me da última foto da famosa atriz que saiu na imprensa. Os braços caquéticos, esqueléticos, aparecendo as veias. Um padrão social sugando um indivíduo, dizendo-lhe aos ouvidos que ainda não está magro o bastante, enquanto todos veem que ele se aproxima da desnutrição. Até onde um modelo imposto pode conduzir seres humanos? Não se trata mais de saúde. O corpo agora representa a possibilidade de ser aceito e amado. Não qualquer corpo, claro.

Acho que Francis Fukuyama tinha razão. Não me refiro ao Fim da história, mas à grande mudança social ocorrida com o fim da Guerra Fria. O mundo se torna aberto, completamente exposto, as pessoas se comunicam, se veem. A internet as coloca na vitrine. Num universo como esse, o que todos querem é reconhecimento. Nesse ponto, acho que o autor acertou em cheio. As pessoas se percebem de modo mais intenso. Talvez elas vejam que, no fundo, no fundo, são muito parecidas. Então a necessidade de destacar-se faz sua [re]aparição. E, é claro, é melhor destacar-se imitando os padrões de sucesso. Subitamente, a imitação, quanto mais próxima do modelo, é o próprio sucesso.

Lembro-me de um amigo dizendo: “Pô, ninguém curtiu minha postagem no Facebook”. Quer uma frase mais digna do seu tempo do que esta? Não é como dizer: “ninguém me viu, ninguém me reconheceu, ninguém reconheceu que o que expus tinha valor, ninguém reconheceu – por tabela – o valor que há em mim”? A própria existência de uma rede social como o Facebook já não diz tudo? E o que dizer da existência desse texto? A época dos grandes ideais, das grandes ideologias, das disputas sobre regimes políticos, da tutela do Estado sobre os indivíduos, tudo isso ruiu – ou melhor, implodiu. E as pessoas agora se encontram diante de dilemas menos sangrentos, em confronto com elas mesmas e com os outros.

Não sei se esse confrontar-se consigo e com os outros tem sido uma experiência muito agradável. A barriga me diz que não. Ela parece traduzir um enorme desconforto entre o que se é e o que se precisa ser. A necessidade de expor a forma “correta” (perfeita?) para ser aceito, reconhecido e amado, como se o valor pudesse ser expresso em taxas de gordura reduzidas, no peso, ou em determinados formatos impostos por terceiros. A barriga está orgulhosa de si – e com razão – porque chegou onde queria, porque atingiu o ponto em que outros a podem reconhecer.

Mas será que todos veem aquilo que vi no rosto de quem a ostentava? Podem observar que a dona da barriga não sabe sequer se reconhecer? E que, por trás do seu orgulho, emerge uma intensa carga de tristeza? E que, sobretudo, ninguém consegue identificá-la justamente porque só tem olhos para sua barriga?


Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.

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