O nome de Lin Shu soa-lhes, sem dúvida, totalmente estranho. No entanto, deveria figurar há muito em todos os manuais de história da literatura. Oriundo da região de Fujian, no sudeste da China, esse grande erudito autodidata pertencente à dinastia Qing – a última a ter reinado sobre o Império chinês – era pintor, calígrafo, romancista, novelista, poeta, ensaísta e tradutor. Foi de fato o autor, desde o final do século XIX, das primeiras traduções literárias na China, das quais as bibliotecas eram, por assim dizer, desprovidas – a tradição chinesa sendo constituída há séculos por comentários de textos chineses antigos e não por importações. Lin Shu contribuiu assim amplamente ao levar, ao conhecimento dos leitores chineses, autores e obras extremamente exóticos, vindos principalmente da Inglaterra, em um primeiro tempo, e a seguir da França, dos Estados Unidos, Suécia e Alemanha; ora, este não falava nem lia nenhum idioma estrangeiro. Primeiramente, fazia com que os textos lhe fossem lidos em voz alta por um assistente-tradutor que dominava, pelo menos teoricamente, o idioma original e que podia arriscar-se sem demasiados percalços a uma interpretação em mandarim oral; segundo os dizeres de seus mais finos exegetas – poucos, é verdade – Lin Shu reescrevia tudo em mandarim clássico, empenhando-se tanto quanto possível em corresponder à partitura. O que significava privilegiar a trama da narrativa mais que sua melodia, seu ritmo ou estilo. Lin Shu, autorizado somente por si mesmo, gozava da surpreendente faculdade que consiste em poder ler qualquer língua através dos olhos de um terceiro.
Auxiliado por dezenove assistentes sucessivos, traduziu, ou mais precisamente reescreveu cerca de duzentos clássicos da literatura ocidental, dentre os quais Balzac, Shakespeare, Dumas pai e filho, Tolstói, Dickens, Goethe, Stevenson, Ibsen, Montesquieu, Hugo, Tchékhov ou Loti. Algumas de suas adaptações, no começo do século XX, tornaram-se mesmo verdadeiros best-sellers na China, como A dama das camélias, rebatizada A Herança da dama parisiense das camélias. De modo ainda mais fascinante e misterioso, cerca de cinquenta de suas traduções não publicadas seriam textos dos quais ninguém até hoje foi capaz de identificar o autor ou mesmo o idioma original. Entre esses manuscritos perdidos, encontram-se obras-primas das quais ignoramos absolutamente tudo.
Os livros servem-se frequentemente de atalhos e caminhos que se bifurcam para atravessar fronteiras e chegar lá aonde não são esperados. Exemplos nesse sentido não faltam na história da literatura ou mesmo da escrita. O jovem Isaac Bashevis Singer – tradutor de Knut Hamsun, Romain Rolland ou Gabriele d’Annunzio em yiddish -, não tinha ao que parece a mínima noção de norueguês, francês ou italiano; trabalhou a partir de traduções alemãs que circulavam na Polônia de antes da guerra. Witold Gombrowicz é outro exemplo famoso; ele próprio reescreveu na Argentina seu Ferdydurke em espanhol, com a ajuda de Virgilio Piñera e Humberto Rodriguez Tomeu, dois escritores cubanos que nunca tinham ouvido uma só palavra de polonês, em seguida traduziu novamente essa versão em francês, auxiliado por um professor da Aliança Francesa de Buenos Aires, para resultar no que será a primeira edição francesa de Ferdydurke, publicada por Maurice Nadeau em 1958.
Em 1921, Lin Shu decide abordar Don Quixote a partir de uma tradução inglesa de 1885. Seu assistente Chen Jialin, que tinha realizado uma parte de sua formação universitária na Inglaterra, parecia capaz de lê-lo, segundo uma técnica já bem ensaiada. Forneceu-lhe, no entanto, apenas uma versão parcial, não só repleta de acréscimos de diálogos inéditos como também amputada de vários capítulos, inclusive seu célebre prólogo; ou seja, um total de 285 páginas que correspondem à primeira parte da obra-prima de Miguel de Cervantes – o que não deixa de evocar a empresa secreta de um certo Pierre Ménard que, segundo Jorge Luis Borges, ambicionava justamente reescrever o primeiro tomo de Don Quixote.
Essa Biografia do cavaleiro louco (ou Vida do cavaleiro enfeitiçado, segundo as retraduções) foi publicada no ano de 1922 em Shanghai, fortaleza da indústria do livro chinês, apelidada então “a Paris do Oriente”, com suas editoras, tipografias e cafés literários. Lin Shu, consumido pela enfermidade, morre dois anos mais tarde e despede-se com esse meio-Quixote.
Não é inútil lembrar que Don Quixote de la Mancha conta precisamente as peripécias de um homem idoso adoentado, apaixonado por romances de cavalaria e que estas seriam a tradução de um texto árabe que Cervantes, astuciosamente, atribui a um historiador muçulmano. O subterfúgio do falso tradutor era, desde o século XIV, um artifício recorrente na literatura cavalheiresca, cujos autores pretendiam frequentemente que seus escritos fossem na realidade traduções do toscano, do tártaro, do florentino, do grego, do húngaro, ou mesmo de línguas não identificadas. Portanto, a modernidade literária se inaugura em 1605 com uma obra que seria uma tradução e cujo protagonista é um leitor de romances. Fechou-se lindamente o círculo.
Uma tradução, enquanto reescritura, por fiel que seja, não equivale de modo algum à obra original. José Ortega y Gasset notava a esse respeito que se trata, na melhor das hipóteses, de um caminho em direção a esta. A incrível cavalgada romanesca do engenhoso Lin Shu, secundado por seu fiel assistente Chen Jialin, longe de desmenti-lo, é ao contrário sua desconcertante ilustração.


Mikaël Gómez Guthart (1981). É um tradutor e crítico literário. Traduziu ao espanhol obras de Jean-Jacques Rousseau, Maurice Merleau-Ponty e em francês autores como Alejandra Pizarnik, Enrique Vila-Matas, Witold Gombrowicz e Miguel de Unamono. É autor da obra La Nouvelle Revue Française.

Tradução do francês por Alexandra Landa.

Publicado por:Philos

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