A vida contemporânea, o feminino, a política, o contexto social do Brasil… O olhar agudo e sensível de Ezter Liu sobre os tempos atuais dá vida à nova publicação da escritora pernambucana – “Breves Fogueiras”, seu terceiro livro. A obra que compila cerca de 60 escritos, exprime sentimentos controversos suscitados pelo isolamento e pelo contexto político e social nos últimos anos. Uma espécie de captura cênica de momentos inquietantes e reflexivos pelas lentes e narrativas de uma das maiores escritores pernambucanas de sua geração.
Em Breve fogueiras, Ezter reúne minicontos como pílulas de histórias e situações que trazem à tona sentimentos densos e reflexões. Narrativas fortes, efêmeras e ardidas, tal como o fogo:
São textos curtos e precisos, que colocam para fora as nossas fogueiras internas. Cada texto é como uma fogueirinha. – Ezter Liu
Transitando entre ficção e realidade, as histórias e personagens questionam o leitor, apelam ao sentir e protestam pela conscientização social e humana. Este é o terceiro livro de Ezter Liu, o primeiro desde “Das Tripas Coração”, que lhe consagrou como primeira mulher vencedora do Prêmio Pernambuco de Literatura 2018.
Com incentivo da Lei Aldir Blanc e produção de Mery Lemos, da Anilina Produções, “Breves Fogueiras” ganha prefácio assinado por Elisa Lucinda e ilustrações de Juliana Lapa. Nas palavras da prefaciadora: “As Breves Fogueiras de Ezter Liu me alcançaram no verão. Sua capacidade audiovisual, numa literatura sem sobras, soube direto o caminho do meu coração e aqui ficou em casa. São reflexões urdidas dentro de um portal intimo, um território feminino, humano com persistentes raízes”.
fisgada
Tava no meio da crise quando descobri que ciático se escreve com c. O engano da ortografia é como um pecado muito grave. Daqueles de catecismo ou pior: dos ditados da quarta série: minha professora horrível: minha escola e seus banheiros sujos: uma nossasenhoradasgraças de mãos estendidas no pátio: benditasoisvos: feita de gesso: salverainha: desgastada: santamãededeus: assustadora: de manto azul fusquinha: rogaipornós que não sabemos as ortografias. Nove anos de idade e o peso do erro nos ombros pequenos. Ainda bem que naquele tempo não precisei escrever ciático. Amém: avemaria. Eu não me perdoaria. A memória fisga como um nervo. Pior que isso: a memória range.
a tempestade
Quando a tempestade começou, foram elas que inventaram o refúgio. Verificaram portas e janelas. Administraram provisões e dividiram turnos. Elas organizaram o fluxo. Mantiveram acesas as luzes de fora. Mantiveram acesas as brasas de dentro. Elas inventaram bons usos para o tempo. Aprenderam trabalhos diferentes. Assumiram funções importantes. Também fizeram manualidades, poemas e canções (no tempo livre). Elas mediram seus medos e viram que seus medos não eram tão grandes assim. Importava suportar a tempestade. Importava manter as paredes de pé e sobreviver. Sempre foram boas nisso
a história depois do fim
Nunca mais eu tinha visto nesta sala esse tanto de amor espalhado sobre os móveis. Nunca mais eu tinha visto aquela blusa, nem aquele álbum, nem aquelas cartas. Nunca o vazio tinha assumido o sentido de espaço. Nunca mais tínhamos feito juntos um silêncio tão grande. O último deus que invocamos não chegou a tempo. Melhor assim.
Ezter Liu é graduada em letras e cidadã de Carpina, na Zona da Mata Norte pernambucana. Após figurar com textos em coletâneas, lançou seu primeiro livro, “Vermelho Alcalino” (2015), pela editora Porta Abert. De lá para cá, vem caminhando entre prosa e poesia, apresentando uma escrita visceral e marcante, com narrativas que protagonizam a força do feminino; o que a faz ganhar em 2018 o Prêmio Pernambuco de Literatura, com a obra “Das Tripas Coração”. Seus escritos se relacionam também com outras artes: Liu é parceria de composição de músicos como Joana Terra e Juliano Holanda, e seus textos são frequentemente adaptados ao teatro e ao cinema; destaque para o filme “Geisiely com Y“, de Mery Lemos; o monólogo “Sete Histórias”, de Mariana Muniz; e o experimento cênico “Vulvas de quem?” com Márcia Cruz.