Poeta? Temos! Mineiro? Também! Introduzindo este nosso ciclo de conversas, um encontro com a escrita de Vinícius Mahier, semifinalista do Prêmio Oceanos 2022.

Jorge de Sena diz em Carta ao jovem poeta que a poesia “consola porém alguma coisa e dá coragem à gente até ao poema seguinte. É quanto basta. Ou tem de bastar”. Começo este caminho poético com Vinícius Mahier que, ao transpor a sensação de um percurso em Eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião (2021), apresenta o livro quase como um espetáculo, e o diálogo da linguagem desse acidente entre quem lê e quem escreve tece o entretenimento principal.

Vinícius Mahier: “Foi uma alegria o livro ter saído pela Macondo por ser uma editora relevante e com foco na publicação de poesia contemporânea. (…) É um livro de estreia, não esperava tanta circulação, ainda mais em tempos de pandemia. Ganhou leitores, uma certa atenção crítica que culminou na seleção do livro como semifinalista do Prêmio Oceanos, e tudo isso agrega um certo selo de qualidade”.

O vaga-lume é frio na barriga, luz no vazio, queda. O vaga-lume é asa tremida, malabarista, conta os dedos para não se esquecer de contar. É como uma breve viagem sobre o corpo-palavra, pousa, mas não tira o cinto de segurança. O vaga-lume não deixa de ser passageiro da própria língua, se veste, grita ironias, dentes de ouro e mais um pouco, tudo que der para caber em caixas-pretas. Essa é a sensação dos vaga-lumes que, em 2019, o poeta começa a urdir. Entre trancos, barrancos e, como o próprio autor diz, “na necessidade de se aterrar”, nasce o acidente aéreo de Vinícius Mahier.

Se o desastre é a premissa, a comunicação irreverente que o livro estabelece com o leitor se destaca como um dos pontos-chave da obra.

Vinícius Mahier: “Talvez a linguagem seja o grande mote do meu trabalho, e também sua forma. Giro em torno da linguagem, dentro da linguagem, sem possibilidade de fuga. Aí vêm os jogos, o nonsense, os ruidos da comunicação, a tagarelice, repetições, inversões, paródias, referências muitas vezes aleatórias misturando o baixo e o elevado… tudo isso me interessa muito porque são trabalhos com a linguagem e, em especial, com os procedimentos de comicidade. (…) Acredito que seja essa irreverência presente no livro, na sua estrutura, que estabelece uma comunicação mais direta com o público”.

Ponto de não retorno

uma palavra dita
é uma palavra que não volta
atrás

a menos que você
repita

a menos que você
repita

(Eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião, página 80.)

André Aguiar diz que “ler um poema atrás do outro é começar a perceber que não é possível olhar para o mundo sem pensar em confusão, porque é exatamente assim que funciona a linguagem”, e é muito disso mesmo. Vinícius Mahier me pega encoberta lá na ferida quase cicatrizada. Diz um pouco sobre nossos acidentes a milhas e minutos distantes e pede para continuar enquanto deveríamos estar tremendamente assustados. Esse livro nos pede para andar embaralhado mesmo, é que faz bem para a calvície (e outras coisas que des-brotam na mente) nunca se esconder. 

E é muito interessante visualizar como os títulos dos poemas no próprio índice, que o autor nomeia como “plano de voo’, se completam, entrelaçam e se costuram, como se fosse um plano narrativo. Não só o “plano de voo”, mas também a “lista de tripulantes e passageiros” ao final – elencando as referências diretas utilizadas no livro.

Eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião me relembra que todo objeto é um signo, no quesito de que representar é estar ao invés de

Vinícius Mahier: “Dentro desse livro tudo é pensado como uma grande composição. A proposta é uma experiência imersiva nessa imagem do acidente de avião. Desde a capa e a primeira página, a ideia é que a leitura já esteja acidentada, as páginas pré-textuais funcionando como uma espécie de alerta, o excesso de números parodiando uma linguagem técnica, os poemas verticalizados da primeira parte, remetendo à queda, os poemas aos pedaços num segundo momento, a sensação dos destroços, da coisa que se espatifa, do controle que se perdeu – tentando nessa espécie de dramaturgia costurar a irreverência ao lirismo”.

Pai nosso que estais
nos céus,
estou no chão.
venha a nós
mas venha a mim.
rarefeita
a vossa vontade, aqui na terra
vos estendo
a minha.
o alívio cómico
de cada dia me dai
hoje.
perdoai a minha
alegria,
assim como eu
perdoo a quem me fez um carinho.
e não me deixeis
sem chão
mas livrai-me do chão,

também.

(Eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião, página 81).

A dramaturgia, em particular, desempenha um papel significativo em sua poesia, imprimindo-lhe um ritmo cadenciado e uma teatralidade sutil. Sua habilidade em conjugar as nuances da palavra tanto na escrita poética quanto no teatro revela um profundo diálogo entre essas duas expressões artísticas.

“Neste momento, tenho dois trabalhos em revisão que espero publicar em breve. O primeiro é a comédia Afinal, o que estamos fazendo? – que apresentei ano passado junto ao meu pessoal do curso de Teatro da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). A premissa do texto é um fim do mundo um tanto incompleto, em que aparentemente tudo acabou, menos o teatro em que a peça está sendo apresentada, sobrevivendo os dois atores em cena, Dodô e Gigi, e o público. Sabe-se lá como, a notícia de que sobreviveu um teatro se espalha e algumas figuras, bastante particulares, invadem o palco tentando atrair para si a atenção da plateia, que acaba sendo a grande protagonista do texto. Isto é o que chamo de “fiapo de enredo”, que ganha força na manutenção cômica dos diálogos, um “arco tagarela” que costura, com alguma verossimilhança dentro do absurdo, as situações mais estapafúrdias que se apresentam na simples reunião dessas personagens tão distintas entre si. O outro trabalho se trata do meu segundo livro de poemas: John Cage e seus teclados. Quanto a este, vou fazer silêncio por enquanto.” Vinicius Mahier

Capa do livro eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião, de Vinicius Mahier.

Eu confundi um vaga-lume com um acidente de avião avisa da impossibilidade de voltar atrás, desperta as minhas imagens e o desejo de ser ilegível. 

Deixo aqui o meu acidente.

“a rua, em torno, era um frenético alarido
você sai do teatro
antes das dez uma cabeça explode
pai nosso que estás no céu
você devia estar em pânico
você tem um dente dois três quatro
você não sabe contar nos dedos
é sempre útil consultar no dicionário
o primeiro i love you baby
john paul george ringo
você mora do lado da rua do teatro ringo
você vem, é o plano
dá tempo ainda de me ver?”

(Julia Peccini, 2023)

sem pé nem cabeça
olha pra baixo
toma distância
respira
sai do chão
cuida do piano
o plano não volta
atrás nunca
só começa
já lhe disse
o marfim
eu
você
se a premonição decidir
depois de uma outra
língua-acidente
quero ser
i
le

vel
também

(Julia Peccini, 2022)


Julia Peccini é natural de Niterói, no Rio de Janeiro e vive em Portugal desde 2018. É Graduada em Português com menor em Línguas Modernas na Universidade de Coimbra e mestranda em Estudos Editoriais. É poeta e vê sua escrita como um processo inacabado de resistência e afirmação de si. Tem participação em revistas, antologias e festivais literários no Brasil e em Portugal. É autora dos livros Aqui cabe um poema (2021) e Nem só de amor vive Afrodite, publicado pela Casa Philos, seminalista do Prêmio Oceanos 2023 na categoria de Melhor Livro de Poesia.


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Publicado por:Philos

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