No momento anterior – difícil dizer se minuto, segundo, ou o mais abissal desconhecido do Tempo –, era uma senhora a reclamar de tudo. Vagando pela casa, insultava o ciático que lhe corroía os nervos, maldizendo a empregada que não sabia varrer o chão ou limpar as vidraças, juntando na mão trêmula farelos de pão caídos sobre o sofá.
Perdida no leque confuso e embaçado das memórias, solitária, falava em voz alta, para si mesma – pretensão inconsciente de confirmar sua existência –, a televisão ligada com o intuito de ter sobre quem destilar frustração: políticos, ladrões, assassinos, estupradores, todo um mundo aprisionado na caixa colorida, seu frágil contato com a realidade.
De cima a baixo: quartos, sala, cozinha; cozinha, sala, quartos.
Às vezes a vassoura para limpar as impurezas; outras vezes as contas na ponta do lápis, enquanto lhe escapava aqui e acolá um impropério sobre a vítima da vez: político, ladrões, etc. O tempo numa camisa-de-força, a inevitabilidade dos percursos exatos, quando já não existem sonhos, quando a vida que se poderia perscrutar está na retaguarda da nuca, setenta anos antes, a marca da idade nos dedos amassados, veias azuis querendo explodir, verter o sangue para findar a jornada, mas não. Estancado no corpo magro, o elixir da vida insiste em circular pelos mesmos canais, pulsando no ritmo preciso dos ponteiros de um relógio.
De baixo para cima: varanda, banheiro, jardim; jardim, banheiro, varanda.
Muxoxos, lembranças irritantes, mágoas emergindo em espasmos. Cada sujeito na lembrança como alvo imóvel, atemporal e insuportável. Tu não te moves dentro de ti, diria a profunda Hilda. Os círculos previsíveis, gangorra, sístoles e diástoles, corrida atarefada de uma parede à outra, muros intransponíveis, mergulho intenso e igual, afogar. A cabeça que, fora d’água por um segundo, não se reconhece mais, logo volta às profundezas, onde os seres são amigos – ainda que inimigos, objeto de revoltas.
Noite recaindo com suas sombras na ponta dos pés, em ritmo infinitesimal, mancha preta no chão. Ela acende a luz. Entram mosquitos, trucidados imediatamente com tapas violentos, clap, clap, clap, “desgraça, aqui não!”. Os filhos lhe dizem “mãe, por que não compra repelente?”; “mãe, por que não aquele aparelhinho que se bota na tomada?”; ao que responde, num bote de pantera, que “não é criança”, que “sabe o que fazer da vida, apesar dos cabelos brancos”. Clap, clap, clap.
Os filhos que quase não vêm mais e ainda querem lhe dar ordens. A escuridão avança, cadáveres de doença se acumulam no chão branco puro imaculado, minúsculos universos onde seu olhar se perde. Os filhos… Aparecem depois de meses, para almoçar num domingo, e não largam aqueles aparelhos idiotas. Ela falando e eles ali, embasbacados, os olhos brilhando. A vida não existe mais do lado de fora: só nas novelas, no noticiário e nos telefones. “Mãe, a senhora devia ter um Facebook”. “Mãe, a senhora devia ter o WhatsApp”. Como se fosse impossível viver sem.
Começa a fechar as janelas, mas antes que faça deslizar a porta da varanda, ele surge num salto tão veloz que parece ter brotado de seu devaneio, tal qual nascimento espontâneo. Seu coração dispara. Executa um pequeno salto para trás, a mão no peito. O gafanhoto é de um verde quase transparente, de tão brilhante. Imóvel, observa-a do chão.
“Ah meu deus, um gafanhoto!”
Não sabe o que faz. Ele a vê, surpreso com tamanho alvoroço, as duas antenas a se mover, indagadoras. Ela corre (corre!) para a cozinha: “não sai daí, seu danado! não entra na minha casa! Ai, meu Pai, se ele entra e se esconde, não consigo dormir. Coisa verde, quem te fez tão verde?”. Esbaforida, procura o indefinido no armário, a arma para afastá-lo. “Não se mata bicho assim, dá azar. Se fosse uma barata, ainda vá lá, esmagava-lhe o corpo rapidinho, apesar de. Horror! Bicho nojento a barata. Naquele dia então, voou direto pra cima do meu braço”.

Um arrepio percorreu sua coluna. “Tem gente que ainda inventa de comer  ‒ a barata. Que digo? O quê: uma vassoura, um pano de chão?”.

Decidiu-se pela vassoura:

“Gafanhoto, gafanhoto, não quero te matar, viu?”

Volta correndo (correndo!). Ele ainda está lá, aguardando pacientemente. Aproxima-se mantendo a vassoura longe do corpo. “Sai, sai!”, tenta varrê-lo, mas o inseto dá um salto na sua direção. Novo susto, leve desequilíbrio. A testa suada. “Ah não, aqui dentro não. Volta pra varanda. Olha que eu te mato! Não quero, mas eu. Juro que”. Acerta o flanco do animal, que se aproxima da saída. “Você me entende, não é? Não quero ninguém aqui. Vamos, seja bonzinho, só mais uma dessas e…”.
Pronto! Pulou para fora, a contragosto, porque se afeiçoava rapidamente à velha. Fecha o vidro com rapidez. O corpo treme, galopes em disparada no meio do tórax. Na sala, vibrações se expandem no ar, em ondas. Ri, vitoriosa, sentindo cada músculo agitar-se sob a pele enrugada. Na orelha, há um zunido estranho, o sangue que lhe corre nas veias e que a acusa de algo.
O inseto a observa, perto das plantas. “Ele sorri, o safado”. Não é aquilo um sorriso? Seus olhinhos são pretos, mas luminosos. “Você pode ficar nessa samambaia aí, se quiser, mas aqui dentro não”. Encosta a testa no vidro e a respiração embaça seu reflexo, logo naquele trecho, bem abaixo dos olhos, onde antes havia um riso.
O gafanhoto, enfim, some. Como viera: tão rápido, tão súbito e impossível que ela se rende, num suspiro, à magia do mundo. Entristecida, lembra com carinho materno a aparição, que hesita em chamar de fato – ou de sonho.


Caio Lobo (Recife, 1979). Colunista da Philos, é formado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Leitor compulsivo e romancista. Lançou recentemente o seu livro Trôpegos Visionários pela editora Kazuá.

Este conto foi agraciado com o 3º lugar no XXVI Concurso Nacional de Contos José Cândido de Carvalho (2016).

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Gafanhoto, por Caio Lobo

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