As problemáticas socioambientais e sociopolíticas do Centro-Oeste brasileiro ocupam as três salas do segundo andar da Pinacoteca Luz, com a mostra “Como é bom viver em Mato Grosso” do cuiabano Gervane de Paula. Sob a curadoria de Thierry Freitas, quase 60 obras pontuam os mais de 40 anos da carreira desse artista ativista e multifacetado. São fotografias, pinturas, esculturas e instalações que traduzem a potência de um criador em constante ebulição. Suas primeiras telas, realizadas entre os anos de 1976 a 1980, parte delas exibidas nessa individual, fixam imagens de um Mato Grosso recém-dividido. Thierry observa:

O artista nos apresenta sensíveis interpretações da paisagem cuiabana: o Bairro do Araés – local onde o artista nasceu e reside ainda hoje -, com suas ladeiras ensolaradas e sua população multiétnica, está representado em cenas de convívio e festa. Há diversas cenas com mangueiras e cajueiros, árvores muito comuns nessas ruas naquela época. Não escapa, também, o registro social da economia local. São frequentes as cenas de pesca e de mineração, mas, principalmente, as cenas nas quais o gado aparece em profusão, já evidenciando a potência motriz que o agronegócio viria a tomar nos anos seguintes.

Em uma clara demonstração das imbricadas relações entre humanos e bichos na região, destaca-se As filhas do fazendeiro, uma tela em que dois jacarés figuram sobre a cama e, ao fundo, duas moças observam atordoadas. “Como é bom viver em Mato Grosso” reflete o aspecto crítico e o humor corrosivo de Gervane que, inspirado no artista canadense-americano Philip Guston (Montreal, CA, 1913 – Nova York, EUA, 1980) cujas obras teve contato na 16ª Bienal de São Paulo, em 1981, usa, em algumas de suas criações, as figuras supremacistas da Ku Klux Klan, colocando-as num passeio de carro ao Pantanal mato-grossense. O artista destaca a relevância da mostra:

Essa exposição é uma das mais importantes da minha trajetória artística, talvez a mais importante até o momento. Porque é uma mostra individual abrigada em uma das instituições culturais mais importantes do Brasil, a Pinacoteca de São Paulo. Segundo, porque a mostra reúne obras de períodos diversos, algumas inéditas, jamais exibidas ao público, compreendendo desde o início da minha carreira artística até a atualidade. Um momento especial, que permite um breve balanço de quatro décadas de intenso trabalho dedicado à arte.

Integrante da mostra “Como vai você, Geração 80?”, um marco no cenário das artes no país que aconteceu no Parque Lage no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, em 1984, Gervane, como relata o curador Thierry Freitas em seu texto, “evidenciou um importante marcador de raça: ele foi um dos únicos artistas autodeclarados negros entre os 123 participantes.”

Arte aqui eu mato, de Gervane de Paula (2016)
Arte aqui eu mato, de Gervane de Paula (2016)

Um caminho sem volta para de Paula que passou a realizar uma série de trabalhos questionadores dos paradigmas das artes no Brasil.  É nesse período que surge outra obra que compõe a mostra na Pina Luz. A partir de uma pequena foto de Leda Catunda, publicada em edição da revista Veja, em 1985, Gervane pinta a artista com certa visualidade gráfica e em grandes dimensões. A consonância desse trabalho com algumas criações dos artistas dessa geração, confirma não só a influência do grupo, mas atesta sua conexão a ele.

As mensagens, mesmo que às vezes veladas, são o ponto alto e forte dos trabalhos de Gervane, que introduz uma necessária dose de ironia, atrelada a assuntos, muitas vezes urgentes, que atravessam o cotidiano. São corriqueiras cenas de pesca, mas também frequentes a crônica policial, os desmatamentos e as queimadas que assolam sua terra natal, maltratando e destruindo flora e fauna. Uma das obras que retrata essa contundente realidade e traz para o espectador uma confluência de sentimentos, que pode variar entre angústia, raiva e tristeza, além da clara referência à exploração predatória, é Arte aqui eu mato, na qual pinta um caçador carregando de um lado do ombro uma onça abatida e exibindo, no outro, sua espingarda.

Residindo longe dos grandes centros urbanos, Gervane de Paula não se omite do debate dos grandes temas da atualidade, que interessam aos homens e à natureza do planeta ameaçado. Sua arte, de cores vivas e suportes improváveis, é um libelo pela vida, pela civilização contra a barbárie. Gervane de Paula é artista apoiado pelo MT Projetos de Artes (Rio de Janeiro), que o representa com exclusividade.

Cartaz oficial da exposição.

Primeira mostra individual de Gervane de Paula em uma instituição paulista faz recorte dos 40 anos de carreira do artista, que questiona as problemáticas sociopolíticas do Centro Oeste brasileiro. Suas pinturas iniciais, autorretratos e trabalhos de cunho crítico sobre a experiência da vida Mato Grossense são contemplados na exposição. Obras como Mapa, de 2016 e Pantera negra, de 2023, podem ser vistas pela primeira vez.

Na mostra, cenas de Cuiabá e as primeiras pinturas do artista podem ser vistas pelo público em trabalhos que compreendem o período de 1979 a 1983. O bairro do Araés, onde está o ateliê de Gervane, está representado em imagens de convívio e festa. Além disso, cenas com mangueiras e cajueiros e pinturas que retratam a pesca e mineração estão presentes.

DE AUTORRETRATOS, PINTURAS E INSTALAÇÕES ATÉ ESCULTURAS E FOTOGRAFIAS

Uma das três galerias da exposição reúne autorretratos e pinturas da década de 1980, época que seu trabalho transforma-se formalmente e adquire contornos gráficos.

Na  sala seguinte estão trabalhos que exploram a relação de Gervane com outros artistas, como pinturas realizadas a partir dos personagens do pintor Phillip Guston, um retrato de grandes dimensões da artista Leda Catunda, realizado nos anos 1980. Também fazem parte desse núcleo trabalhos como Bomba caseira (2002) e Artista negro, galerista branca (2018).

A terceira e última galeria da mostra reúne um conjunto de obras criadas a partir da década de 2000 como testemunho das experiências de conflito e violência no Centro-Oeste. Incorporando novas linguagens em seu trabalho, Gervane cria instalações, esculturas, fotografias e pinturas que exploram temáticas como a violência policial, aumento do desmatamento e queimadas no Pantanal, o uso indiscriminado de agrotóxicos e o tráfico de drogas.


Gervane de Paula (Cuiabá, Mato Grosso, 1961)  é um artista que produz em diferentes linguagens e suportes, trabalhando com pintura, escultura e instalações. Sua obra tem profunda relação com os ecossistemas  e experiência na região em que vive. O cerrado, a floresta e o pantanal são objetos de reflexão para sua produção. Cenas da vida cotidiana e obras de cunho crítico permeiam o trabalho de Gervane, que ganhou projeção fora de Cuiabá em 1982, quando expos pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, na mostra coletiva “Brasil/Cuiabá: Pintura Cabocla”, organizada pela crítica cultural Aline Figueiredo.


Serviço: Exposição “Como é bom viver em Mato Grosso”, de Gervane de Paula, na Pinacoteca Luz, de 23 de março de 2024 até 1 de setembro de 2024, na Praça da Luz, 2, São Paulo — SP.


Descubra mais sobre Philos

Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades

O que você achou dessa leitura?