para Almada Negreiros

“Que tristes e transparentes são agora na minha memória aqueles primeiros sorrisos mexicanos.” (Roberto Bolaño)

“E sendo a proporção dos priveligiados vantajosamente de 1 pra um milhão resulta que a concepção da eternidade demora-se n’uma velocidade acceleradamente retardada de exito um milhão de vezes. Todas as luctas tumultuosamente-tantalo do cyclo das gerações dissolvem-se pra passado conseguindo deslocar a sensibilidade prálém de Zenith na distancia exacta em que as dimensões do homem fôssem resumidas no ponto mathematico e centro das Zonas esfericas alucinadamente concentricas na suspensão ether.” (Almada Negreiros)

Antes de ser abduzido por agentes secretos numa van, uma ximbica de carburadores caindo aos pedaços, Pietro Paolini dizia-me que vivemos numa era de insegurança cósmica e falta de dentes. “Repare, José, na gente que anda por aí, sobre a pele continental, a perder pré-molares e molares, quando não os caninos e os incisivos! Nesta aldeia, a boca desdentada sorri sem consciência. Perdem-se os dentes mas os pequenos sorrisos oferecem-se, vulgares, prostituídos, escandalosos. São os lábios desdenhados pela misericórdia dos santos, estátuas cujos pés os fiéis lambuzam de beijos. Os dentes não se substituem, até mesmo quando estes santos se enforcam nas igrejas!”
Com os sapatos apoiados no suporte de ferro do camarote, Pietro Paolini era o barítono interessado em cactos exóticos, pelo menos assim justificava a sua presença no território. De Napoli para Valparaiso, com o manual de von Humboldt debaixo do sovaco. E agora entre nós, os desdentados. As grandes casas de ópera desistiram de seu nome; Pietro Paolini não se curvara. Recusou o convite da Ópera de Manaus e, de Valparaíso, com um telegrama na mão, deixou-se levar por terra. Aqui chegando, hospedou-se na pensão sob os arcos que atraía artistas, astrônomos, aspirantes a detetive e, por uma vez, o poeta com um gancho no lugar da mão. No quarto desocupado pelo escritor best-seller de “O Supermacho II, continuação patafisica”, que jazia em coma no hospital central enquanto o seu livro ganhava mundo e concorria nas listas dos mais vendidos com a famosa e desconhecida autora italiana sob pseudônimo, Pietro Paolini esvaziou os bolsos, a carteira e o baú.
No armário, Pietro guardou os fraques de ópera, as meias de seda negra, as fartas roupas de baixo e alguns pertences pessoais como a bússola e um cronoscopio. Recordava-se do ultimo espetáculo do Barbeiro de Sevilha no Colón, no qual surpreendera o público não apenas com a sua voz como também com o seu carisma. Dias enterrados num sepulcro. O medo da cruz e a certeza de que dela ninguém sai com vida. Pietro Paolini, habituado a cantar e esperar o impossível, esmagara o público com a sua voz até ela vingar-se. A voz o ultrapassara, uma mulher a ausentar-se. Ambas rejeitavam o barítono de Napoli pelo que ele tinha de contraditório. Afastado do palco, Pietro insistia na barba mal aparada, na roupa vestida com negligência, na gravata virada ao contrário e na mania de apertar o nariz com o indicador e o polegar para simular um afogamento em terra firme. Ninguém achava graça naquele gesto vindo de um sujeito com cabeça de cachalote. Nós, os limpa-botas do Quadrado assustamo-nos na primeira visão que tivemos de Pietro Paolini. Deu-nos a impressão de um monstro do mar e nós estávamos tão distantes da água.
O Quadrado mais quadrado da América Latina não é apenas o campo santo, a praça Alfred Jarry, onde passamos as madrugadas vermelhas e estriadas em nossos camarotes, oscilando entre o espanto e o absurdo. O Quadrado estabelece-se como uma edificação horizontal de escritórios de lustradores. Trabalhamos e nos embriagamos de meZcal em meio ao olor daquele pátio de diversão para andorinhas diurnas, espiões russos, velhas herbolárias e jovens displicentes. A qualquer instante, poderíamos nos dissipar no éter. A nossa fragilidade permitia que nos submetêssemos a punhaladas e chutes dos guardas em coletes ante-bala num acesso de fúria desmerecida. Este potencial de violência intrigava. Em meio a mansidão moma dos engraxates, ouvíamos o Tango 31 a reverberar do coreto, a madrugada egoísta engolia amanheceres e entardeceres e os séculos rodavam no meio do Quadrado. No chafariz, a fonte transbordava, “os proprios repuxos por mais que subissem eram sempre repuxos; por isso que a vida dos repuxos era só certificarem-se de que eram repuxos.”
Com a garganta enferrujada, Pietro Paolini vacilara de camarote em camarote para investigar o melhor preço. Controlados pelo sindicato, devíamos seguir a tabela municipal. Entretanto, naquele momento em que ignorava o seu futuro, Pietro Paolini se aproximou de mim, cumprimentou-me e pediu licença para instalar-se no banco do meu camarote. Corpulento, quase fez com que a caixa desmoronasse. Primeiro, tirou os sapatos e pediu-me que passasse nos seus pés uma pomada ante-contraceptiva para o tratamento dos calos. Não era costume para os homens do Quadrado massagearem os pés da clientela e eu o fiz com cerimônia, esperando que ninguém reparasse já que facilmente eu poderia virar alvo de chacota. Calcei os sapatos no barítono, havendo reparado que a massa corpórea impedia que ele desse os laços. O homem se mexeu no assento e, num repente, arrancou o cinto para que eu o lustrasse também. Assustou-me ao gesticular dentro do casaco arrepiado, deitou-me tinta nos nervos.
-Pietro Paolini é um homem que está envelhecendo e ninguém pode socorrê-lo!
-Todos os dias, acordamos mais inúteis!
Uns gritavam do coreto.
Desde que comecei a engraxar os sapatos de couro negro daquele homem, ele me conta do caos meteórico, dos incêndios interestelares a remodelarem as formas do universo em processo idêntico ao da sedução entre amantes. O fogo a tudo altera. De um assunto a outro, tratava dos fantasmagóricos sultões turcos na bela Constantinopla sob a égide da meia lua e de uma estrela branca. A vermelhidão, o pano de fundo. Enquanto confabulávamos, reparei que dois homens louros e estrangeiros, de ombros largos, rondavam-nos. Um pouco mais além, um terceiro nos observava através de um binóculo.
“Penso no meu cãozinho Zamor”, queixou-se Pietro.
O barítono não pôde trazer Zamor e é tão fraco em seu interior. A menor brisa do deserto o levaria. Ele envelheceu nos últimos trinta minutos. Não ama desde menino (ou nascera esburacado?). Cantou na esperança do impossível e a aurora não tardou. Os seus sapatos cintilam depois que eu os esfreguei com a flanela apesar do meu estado de embaralho mental. Um nervo corre pelo crânio. As artérias pulam nas laterais da testa de Pietro Paolini. A minha história com Rosina está atrás de mim. Desde que perdemos alguns dentes, o amor não se repete igual. Também eu, o limpa-botas do Quadrado sou fraco, enfraqueço a cada dia.
Eu, eu, o mexicano. Ajeitei o corpo no banquinho que me sustenta desde os quinze anos, fixei os olhos na testa de Pietro Paolini e suas artérias saltitantes e pus-me a falar. Sentia que era a minha vez depois de tanto ouvir do viajante. Fazia cinco dias que eu louco de contente vivera como no movimento de um carrossel. No dia trinta e um, Rosina, filha do homem mais avarento de Jalisco, entregou-me três pares de sapatos para limpar. O pai não autorizava que submetesse os pés aos cuidados de engraxates. Retirei as botinas do saco plástico e prometi entrega-las quando prontas. “Não se aborreça, vá dormir, senhorita!”. Ciente de que as manhãs não se erguiam naquela latitude, Rosina insinuou com o sorriso desdentado que preferia aguardar e pagar-me pelo serviço em adiantado. Estendeu-me a mão, da qual cinco pesos amassados saíram como num ato de magia quente e suarenta. Míope, deixei-me encantar pela musicalidade de Rosina sem reparar nas suas feições símias. Os do Quadrado, no entanto, riam-se de mim ao observarem-me enamorado de uma mona.
Pretendo, ao pé do camarote, que as cenas se alternem.
“Não é preciso sagacidade para compreender-se apaixonado,” sugeriu Pietro Paolini. “Por isso, não me rendi a mulher alguma, excluí uma por uma desta redoma”, completou, apontando para a protuberância de seu abdômen alimentado de foie gras. “Vocês são como Fígaro, tem os dedos ágeis para tecer intrigas e, por hábito, tombam na própria cama de gato. Barbeiros e engraxates tem alma de peão, amolecem com qualquer música folclórica!”.
Debalde o senso de superioridade artística, Pietro Paolini fracassara pela voz desapaixonada, gélida e sentimentalmente preguiçosa mas eu nunca soube os motivos de sua ruína. Iludi-me pelo seu porte majestoso. Quis crer que desfrutasse de uma vida divertida. O barítono consultou o cronoscopio e ajudei-o a sair do camarote. Ele pesa mais de cem quilos, pensei. O Quadrado aparentava estar fora de lugar. Entre o espanto e o absurdo. Talvez Rosina sonhasse comigo no abrigo do pardieiro enquanto fritava tortilhas no fogãozinho de gás.
Pietro Paolini queixou-se de dor nas juntas ao empertigar o corpo. Findo o serviço, tomei mais um trago de meZcal e assoviei aos camaradas para anunciar que trancaria o camarote e pegaria a estrada para a aldeia. O barítono me remunerara o equivalente a cinco garrafas de aguardente. Nenhum de nós aspirava implantes, medíamos fortuna em números de garrafas cheias. Dentes falsos, de ouro ou porcelana eram objetos inalcançáveis. Numa das quatro pontas do quadrado, K1, os agentes russos não perderam tempo. Encapuzaram Pietro Paolini e atiraram-no no veículo que os recebera de motor ligado.
(continua)

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;K-4, O Quadrado, por Kátia Gerlach

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