meu corpo é terra
invadida
colonizada
traficada
desmatada
assassinada
invadida
saqueada
vendida
massacrada
Meu corpo é uma pátria que não me quer
Porque venho de um continente que não me conhece
Meu corpo é um barco
De madeira nobre
Casco desgastado
A deriva
Que carrega meu convés
De um continente a outro
E no ventre multidões de futuros escravos
Meu corpo é âncora
Que interrompe meu caminho
E no lugar de alguma segurança de materialidade
Se materializa como um peso que me paralisa
117 quilos de metal enferrujado que me puxa para o fundo
Que arrasta todos ao meu redor
E afoga
Meu corpo é roça
Onde minha mãe cresceu
Da qual fugiu de minha avó
Com a qual ela ainda sonha
Sem perceber que nunca existiu como ela lembra
Que nunca foi o que ela imagina
E nunca será o que ela é
Meu corpo é um barraco
Construído entre a pedra e a lama
Com amor e violência
Por muitas mãos, nem todas bem-vindas
Reformado por toda uma família
Numa obra que nunca terminou
Entulhado até o teto
De coisas velhas
Memórias embalagens nunca descartadas
Umidade
Mofo
Uma herança que nunca vai valer o valor investido
Meu corpo é minha carta
Que não me alforria
Não me remete
Não escrevo
Não leio
Não recebo
Não quero
E que diariamente
Penso em incendiar


Joseane Maria é escritora, poeta e cineasta formada pela Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC). No segundo semestre de 2020, vai lançar o seu primeiro livro “Olhos de Represa” que, como diz em um dos seus poemas: “são livros escritos e queimados ainda dentro de mim“. O poema “Meu Corpo é Terra” é um convite para a imersão no universo da escritora carioca.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades