Não eram os olhos — entreabertos indicando o infinito. Nem o cabelo, e seu sugestivo amarelo de outrora. Não eram as esparsas nuvens, que manchavam — qual marcas do tempo ou tinta — o azul claro e profundo do céu à volta. Por certo o vidro do carro antigo à meia altura também não era o motivo. Nem o movimento que refletia. Assim como também não era o pedaço de carroceria preta que podia ser visto. Tampouco eram suas vestes, o lenço de bolinhas preso ao pescoço ou o esmerado caimento do laço.
Não era a maquiagem sutil, o negrume dos cílios, a bilha esmeralda. Nem os pensamentos que a mulher guardava, sua beleza incomum. Não eram as histórias reais que trazia consigo, as dificuldades da infância, o casamento falido ou os rumores de traição. Não eram todas as ideias que se fazia a seu respeito, não eram as notas da assessoria de imprensa. Tampouco era a trama que envolvia a sua personagem. A expectativa do enredo, a promessa de um triller noir.
Não era também o ritmo que se poderia intuir em sua respiração, a voz soprada e firme, a postura, a inclinação da cabeça levemente para cima. Talvez ela pensasse nas contas por pagar, talvez lamentasse a lentidão com a qual transcorria a gravação, talvez lhe pesasse o que poderia ter sido. Talvez lhe pesasse o que já não era mais. Talvez pesasse o que se prenunciou em vão. Mas não era isso. Pode ser que sentisse saudades, ou que odiasse alguma situação. Pode ser que estivesse divagando por algum lugar distante, ou rememorando as próximas tarefas. Talvez não quisesse estar ali. Talvez não quisesse estar pensando no que pensava. Talvez sentisse raiva, ou medo, ou dúvida. Mas podia estar admirando também: uma flor, uma pessoa, um instante. Ou podia estar simplesmente despistando olhares. Não importa, não era também isso. Não era a conversa que ouvia ao longe. Não era o frio ou o calor.
Não eram os lábios iminentes, ou seu vermelho fugidio. Não era o nariz, o nariz simplesmente. Não era. Nem a orelha era, ou seu brinco escondido por uma fina mecha de cabelo. O ar blasé não dava conta sozinho, assim como o cenário ou a iluminação. As sardas sutis pareciam dizer muito sobre aquele rosto, mas também não eram elas. Tudo fazia parte, mas não era nada em particular. Não era o vinho tinto das unhas, as esguias curvas da mão, o pouso da mão, a placidez da mão. Não era a mão também. Os sonhos que tinha desde menina, realizados ou não, a evidente perda de alguma inocência, a aparente manutenção de certa ingenuidade, igualmente não eram. Assim como não era o ombro à mostra, esse ombro que certa vez fora tocado por uma mão pesada e quente. Não era também o osso da saboneteira, por onde os mesmos dedos deslizaram. Não era o sonho, a noite anterior. Nem o perfume.
De todas coisas que não eram, o perfume seria a principal delas. Mesmo sendo um perfume tão marcante como marcante é uma cor sem nome, mesmo evocando alguma viagem memorável ou o encontro em que um aroma sutil tivesse sido descoberto como se emanasse do gesto. Ou dos pelos. Mas não era o perfume. Não era também a leveza da cena, que parecia apontar para a flutuação. Ou a intensidade, que tencionava para dentro. Não era a luz apenas, o ângulo, o recorte pretendido. Ou tudo o que já se adivinhava. Não era nada disso. Não era a textura do dia. Não era o queixo. Nem o vento. Não era o olhar também. Aquele olhar, não era. Era a fotografia. A fotografia apenas. Era unicamente a fotografia. E já não era mais.
Leandro Jardim (Inglaterra, 1979). Formado em comunicação e pós-graduado em engenharia de produção. Professor na área de gestão, atualmente é mestrando em administração pela PUC-Rio. Publicou os livros ‘A angústia da relevância’ (Romance, 2016), ‘Peomas’ (poesia, 2014) e ‘Rubores’ (contos, 2012) pela Editora Oito e Meio; além de outros dois de poesia: ‘Os poemas que não gostamos de nossos poetas preferidos’ (Orpheu, 2010) e ‘Todas as vozes cantam’(7Letras, 2008).
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