Refeição de abismo

fumos violam horizontes…
templos de ódio geram
tempos de guerra

quem tem coração providencia marca passo
adentra a noite do enfarto
à procura de estrelas em brilho de sístole e diástole

carnificinas se amontam pelas esquinas
a certidão de óbito
escrita em melanina

ante a muralha todos os dias
com armas de entusiasmo e resistência
a consciência abre caminho e ilumina.

Onde está o Amarildo?

lançada no vácuo da brancura mais dura
a vida ferida
pela cruel e genocida dominância da usura
expõe as chagas seculares
sem sutura.

Pacto

não escrever amém para saudar qualquer santo ofício
nem se iludir que felicidade é ficar rico
ou vender os risos de nossos carnavais

não escrever sim
a nenhum senhor
para mendigar em suas escadarias
nosso pão
e o seu circo

sonhar no chão o paraíso
e jamais caminhar em círculo.

Revela-som

em primeira instância o chicote
sempre foi erudito

ordena em várias línguas
com suplícios de morte
o desfile das incontáveis chacinas

por estas marcas indeléveis
tão tuas
tão minhas
plurívocos punhos de um só grito
se alinham.

Indignação antiga

quando arrasado
mãos dadas com o suicídio possível
à beira do precipício
é de se perguntar
o quanto de racismo há nisso

apupos em uníssono
acusação de revanchismo
e problemas só do indivíduo?
das entranhas vem à tona nosso vômito coletivo
prantos e protestos
rejuvenescidos.

Explanação

não apelo para a pele
a fim de gerar pena

meu apelo é desvelo
de uma consciência serena
para além daquela alma
cujo negar a si mesma
o desejo de viver drena

a pele sela os sinais
pelos quais todos passam e hão de passar
consciência latente
sem omissão possível
que não seja se abortar e se tornar invisível.

Performar

necessário avançar certos sinais
do que há séculos de privilégios
foi estabelecido como lei

retomar a luta
sempre rainha ou rei
de seus atos e desacatos
mesmo que recatados
e debulhar horizontes carrancudos
com as mãos untadas de arco-íris.


Cuti é pseudônimo de Luiz Silva (Ourinhos, São Paulo, 1951). Formou-se em Letras na Universidade de São Paulo. Mestre e doutor em literatura brasileira pela Unicamp. Foi um dos fundadores e membro do Quilombhoje-Literatura e um dos criadores da série Cadernos Negros (1978-2017) Publicou dentre outros: Poemas da carapinha, 1978; Batuque de tocaia, 1982 (poemas); Suspensão,1983 (teatro); Flash crioulo sobre o sangue e o sonho, 1987 (poemas); Quizila, 1987 (contos); A pelada peluda no Largo da Bola, 1988 (novela juvenil); Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro, 1991; 2.ed., 2009; Negros em contos, 1996; …E disse o velho militante José Correia Leite, 1992; 2.ed., 2007 (memórias); Sanga, 2002 (poemas); Negroesia, 2007 (poemas); Contos crespos, 2008 (poemas); Moreninho, Neguinho, Pre-tinho, 2009 (ensaio); Poe-maryprosa, 2009; A cons-ciência do im-pacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Bar-reto, 2009 (tese de doutorado); Literatura negro-brasileira, 2010 (ensaio); Lima Barreto, 2011 (ensaio); Quem tem me-do da palavra negro, 2012 (ensaio); Ki-zomba de vento e nuvem, 2013 (poemas); Contos esco-lhidos, 2016; Negrhúmus líricos, 2017 (poemas); Ten-ho medo de monólogo (co-autoria Vera Lopes) & Uma farsa de dois gu-mes, 2017.

Publicado por:Philos

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