No princípio era o substantivo: desejo (ou: primeiramente #foratemer; segundamente era preciso, para realizar uma casa literária, conseguir uma casa). O desejo colou-se ao peito e à raça, e fui-me a Paraty.

“Nos acasos noturnos do devenir / –– e todo acaso é noturno” são os versos inaugurais de um antigo poema meu, que talvez nem seja bom, mas foi profético. Ainda na primeira noite de buscas, cambaleando entre as ruas pedregosas e a inexperiência, encontrei a casa de porta e janelas azuis que viria a ser a Casa Philos. Mistérios.

Encontrada a casa –– como nós: múltipla, colaborativa, onde seríamos anfitriões e também hóspedes; e não senhoriais proprietários temporários, moeda comum pelas bandas da Flip ––, era preciso recheá-la.

Quantas metáforas cabem em uma curadoria? Penso numa bacia hidrográfica, águas (con)fluindo, engrossando uma programação, formando e dando a ver nossas escritas nas margens, às vezes transbordando inesperadamente. Escrevo numa mensagem de facebook: calma, rapeize, segurem a onda dessa divulgação oficial. Isso é um tetris muito complicado. Noves fora a zuera (penso numa tese de doutorado: A Informalidade nas Relações Profissionais), é realmente um tetris bastante complexo. E tetris é uma ótima metáfora.

Sexta à noite e tenho uns três emails para enviar (que não envio). Mas tudo bem (mais ou menos), tem uns outros quatro emails que ainda não me responderam. E la nave va (nunca vi esse filme). Envio alguns. Engraçado como esperamos respostas semi-imediatas a mensagens que demoramos dias para mandar. Procrastino eu, acelera-te tu. Serão @s outr@s tão autocentrad@s assim? Email, email meu, haverá curador no mundo tão inseguro como eu? Tão inseguro que sequer indago d@s outr@s curador@s se também sentem os arrepios que me percorrem. Solidão entre amig@s.

No meio da curadoria, férias. No meio das férias, crise conjugal. No meio da crise –– mas porra, a vida é uma cebola mesmo (bonecas russas são verniz pseudossofisticado à metáfora). No meio: mais meio, mais dentro, mas sem miolo no dentro de dentro. Rios, cebola, tetris. Há que se escolher boas metáforas. No meio de tantos dentros, o fim. Mas o meu divórcio não interessa a vocês, desculpem o desabafo.

O tetris é ainda mais complexo porque peças já encaixadas desvanecem-se, rebelam-se, obrigando a rearranjos enlouquecedores. Fulano vem! Não vem (personagens da Evocação do Recife bandeireana: “Coelho sai! Não sai!”). –– Chamei Beltrana para a mesa tal. –– Ih, mas Sicrano não se dá com a Beltrana. –– Mas eu pensei que seria diferente, que seria… –– Mas assim não dá, nunca dissemos isso…! –– Eu não quero ficar nesse dia, porque isso, porque aquilo. –– Mas olha, tem esse argumento, e mais aquele, e a programação já foi para a gráfica! –– (…). –– (…). A la Brás Cubas sim, ora por que não?

A vida é a arte do possível. Não foi possível, por exemplo, repetir na baía da Ilha Grande –– alguém me disse não pertencerem aquelas águas calmas nem a Angra nem a Paraty, mas sim à Ilha –– a experiência de oficinas e masterclasses que havíamos levado ao Flipoços meses antes. O que não me impede, porque esse texto é tão fragmentário que se estilhaça até aquela outra Casa Philos, de abrir uma fenda no espaçotempo para inserir duas notas vindas de Poços de Caldas:

A escritora, mineira como a terra que nos cerca, avança em sua masterclass, debruçando-se sobre Virginia Woolf para afirmar que a matéria apropriada à ficção não existe. Agora é hora de enfiarmos a mão em um pequeno saco e dele retirar um objeto, sobre o qual devemos escrever brevemente, inspirados por características do romance Ao Farol –– que esperarei longos anos para ler, tentando esquecer os spoilers da tarde fria. Pego meu objeto, minha caneta, meu caderno de anotações: Sua existência de plástico maleável mal pintado parecia vulgar e inofensiva, mas e se ele fosse o muiraquitã reencarnado, o deus da fertilidade feito brinquedo vindo a nosso mundo moderno em sacrifício, feito aquele outro deus feito homem há muitas e muitas noites e incertezas atrás? E se aquele pequeno sapo de borracha fosse uma revelação? Seria preciso mais tempo para saber, porque há revelações que exigem de nós mais do que somos acostumados a conceder às pequenezas, mas não houve tempo, não houve sol, não houve a entrega necessária, porque a branca folha de papel precisa chegar ao fim. Leio meu texto em voz alta e devolvo o pequeno sapo de borracha ao saco. Gostei da experiência, eu que nunca me meti em oficinas literárias.

A tarde seguinte, outra masterclass, sobre literatura e pintura na efervescência da modernidade, e somos provocados a escrever um texto de pinceladas impressionistas. Poeto em prosa, nas diminutas páginas do caderninho: As folhas mais alongadas, feito tivessem já gasto seu frescor ao longo dos curtos dias do verão desde que brotaram e cresceram desse jeito banal, tão banal, tão pungente em sua simplicidade de crescer, se alongar, desesverdear, existir. Amareladas, já, nas pontas, com as pequenas estruturas esféricas grudadas aos caules, avermelhadas nas folhas novas, alaranjadas nessas folhas longas e esmaecidas do cansaço de se erguerem ao céu azulado feito um riacho estático, um regaço. E as outras, as folhas mais jovens, mais vívidas, mais bojudas. Os caules mais firmes, aquelas vermelhices esféricas mais encarnadas, mais abundantes. O destemor e a petulância do que é jovem. A tessitura do caos. Os imprevistos à sombra, os abismos em cada vento. O canteito de ervas daninhas florescia mais pólen –– pequenino e infinito pólen –– aos olhos atentos da mudez do que todos os campos de tulipas da Holanda seriam capazes.

Voltamos a Paraty. Ou melhor, ao Rio de Janeiro, porque além da curadoria, essa logística imaterial, há a logística concreta a se preparar. Equipamento de som. Apoios financeiros. Cadeiras. Material de divulgação. Corres, corres e corres. Volto a Paraty para uma visita técnica mais aprofundada a nossa casa. Trenas, fotos, questionários preenchidos. Voltamos ao Rio. E chega o dia de voltar a Paraty, o carro lotado de almofadas, revistas, jornais, tapetes, painéis, fita adesiva, microfones, amplificador, mesinha, cadeiras por dentro e por cima, amarradas no bagageiro. Poeta, editor, curador, produtor cultural e motorista da Transportadora Casa Philos S/A. A meu lado, o parceiro nessa loucura: poeta, editor-chefe, curador, agente literário, pernambucano leão-do-norte hábil na amarração de cordas compradas naquela manhã como se amarrasse versos. Dois bichos literários da pesada aprontando confusões do barulho. Sessão da tarde na estrada, entre risos, ansiedade e tretas telefônicas, que não cessam mesmo às vésperas de.

A véspera. Desce, monta, sobe (não é o que vocês estão pensando). Este painel fica melhor aqui? E este banner? Ligo para o Rio, quem pode trazer o que esqueci? Consegui. Um casal de amigos na cidade por acaso, um show no Sesc Caborê, o melhor rolé aleatório de 2018. Durmo. Amanhã já é Flip.

Já é amanhã, já é hoje, mas ainda não é. Só de noite. Desce, monta, sobe. A festa se inicia, mas ainda é soft opening. Amanhã sim.

Amanhece. Antes que terminemos de arrumar o salão da Casa Philos para a estreia, @ públic@ já está chegando. A mesa corre, o dia corre, os dias correm. Debates LGBTQI+, debates sobre negritude, poesia política, teatros, linguagem prisional, vozes consagradas dialogando com novas vozes, recital poético-musical, textos eróticos em leituras sensoriais, mulheres em cena. Hilda Hilst parece abençoar essa casa que faz das margens um dos centros de uma Flip múltipla e fragmentária como a Philos, como esse texto, como a literatura, como o mundo.

A Casa Philos pulsou no peito e na raça até o último dia da Flip 2018. Mas essas pulsações (sopro de vida, para citar Clarice) não consigo anotar aqui. Quem viu, viveu. E a casa, muito embora desmontada, não se desconstruiu. Assim como Borges disse que @s escritor@s estão sempre escrevendo um único livro, talvez estejamos sempre construindo nossa casa


Thássio Ferreira (Rio de Janeiro, 1982). Editor executivo da Revista Philos. É poeta e contista, autor dos livros de poemas (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016) e Itinerários (Ed. UFPR, 2018 – no prelo). Já publicou poemas e contos em diversas revistas, como Germina, Mallarmargens, Revista Ponto – SESI/SP e a Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras; assim como em variadas antologias Seu livro inédito de contos “Cartografias” foi finalista do Prêmio SESC 2017.

 

Publicado por:Philos

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