Ao receber a notícia da morte de papai, senti alívio. E remorso. Fugi para o andar superior da casa, tranquei-me no quarto e chorei em silêncio, com o travesseiro contra o rosto. Até o momento final do sepultamento, até a última pá de terra, sofri intensamente com a guerrilha de sentimentos tão díspares a corroer-me. Alívio, remorso e tristeza alternando-se, incessantes.
Papai morreu nove meses depois de ser diagnosticado com um tumor no esôfago. Durante esse período, fomos obrigados a admitir, exasperados, que o câncer alastrara-se para além das fronteiras do corpo. A metástase não é limítrofe ao organismo. Avança feito névoa densa, impondo à rotina um peso extra, insuportável, vertiginoso. Passamos a orbitar ao redor da doença, uma espécie de estrela vermelha incandescente que se alimenta da desgraça e do desamparo refletidos em nossos olhares enfermiços.
Eu já não aguentava mais viver num lugar adoentado, cheirando a remédios. Nossa casa estava sempre cheia de visitas perguntando as mesmas coisas, fingindo preocupação, repetindo frases de efeito retiradas de um velho livro de autoajuda: “Deus sabe de todas as coisas”, “Temos que ter fé”, “Um milagre sempre pode acontecer”, “Gostei de vê-lo hoje, nem parece doente”. A verdade: ninguém é capaz de suportar por muito tempo a áurea de decadência imposta pela aparente presença da morte. Amigos e parentes acabam se afastando, perdendo-se em promessas vãs de “pode contar comigo”.
Eu também fugiria para bem longe se pudesse. Muitas vezes, desejei a morte de papai, que aquilo tudo acabasse rápido. Que nossas vidas pudessem recomeçar, não importando o quanto estivéssemos destruídos.
E quando meu pai sucumbiu, foi como se o cansaço e o desassossego tivessem desaparecido concomitantemente, aliviando a pressão, nos tirando a responsabilidade de continuar acreditando numa cura que nunca vinha. O doente morre e acontece uma trégua, ainda que momentânea. Não há mais nada a ser feito. Acabou. A vida deveria seguir. Assim eu queria crer, de maneira a diluir o remorso diante do alívio que a morte de papai trouxe. Eu tinha apenas doze anos e ninguém com quem conversar sobre a ambiguidade dos meus sentimentos.
O enterro de papai marcou em mim a dificuldade de trocar de roupa para ir ao cemitério. Eu chorava tanto que minhas lágrimas borravam a visão. Eu jamais havia sentido tamanha dor incapacitante. A vergonha pelo alívio, quando o que deveria sentir era só tristeza e saudade, ajudou a tornar a situação ainda mais difícil. O medo de ser descoberto no instante em que mamãe olhasse com um pouquinho mais de atenção meu rosto e constatasse que minhas expressões não comoviam nem estavam à altura do sofrimento esperado de um filho que acaba de perder um pai. Tive de sair correndo da capela duas vezes para vomitar no canteiro de flores.
O padre disse algumas palavras, leu um pequeno trecho bíblico, espargiu água benta sobre o féretro lacrado. O cortejo seguiu mansamente até a cova. Havia chovido pela manhã e o céu continuava carregado de nuvens escuras. Presumi que os coveiros não tiveram dificuldade para cavar o buraco. A terra úmida cheirava a esterco. Cravei meus olhos no caixão para não imaginar no que possivelmente o corpo de papai se transformaria naquele imenso jardim de humanos, onde o que se planta nunca mais nasce.
Tento não pensar em meu pai a partir de seus piores momentos. Alcoólatra, foi internado duas vezes num hospital psiquiátrico com crises severas de alucinação. Perdeu os pais ainda criança, vítimas da tuberculose. Morou em casas de estranhos, onde foi obrigado a trabalhar muito cedo nas lavouras de tomate para ter direito à comida e a um canto para dormir. Era, apesar de tudo isso, um homem amistoso que, mesmo bêbado, nunca usou de violência. Acredito ter herdado dele a melancolia, a aparente calmaria, o andar cabisbaixo, a timidez que se desfazia logo após o primeiro copo de cachaça, os cigarros que fumo até hoje. Os livros. Papai lia muito. Era incrível como o mesmo homem que operava máquinas numa fábrica de refrigerantes pudesse chegar em casa cansado ao fim da tarde, já anoitecendo, e mesmo assim, depois de tomar banho e fazer café, sentar-se em sua poltrona para ler clássicos da literatura, que, naquela época, eu não tinha conhecimento para avaliar o quanto eram significantes. Muitas vezes fiquei sentado aos seus pés, calado, admirando-o. Não é necessário recorrer a sessões de análise para entender que, enquanto seguro um livro, bebo café, acendo um cigarro, sozinho em casa, estou tentando replicar aquela imagem de papai, impenetrável, protegido, iluminado por uma luz difusa, inalcançável, amparado pelas palavras. Passarei a vida tentando, inutilmente, resgatar a lucidez daqueles momentos ao lado de papai lendo livros que faço questão de tê-los comigo. Dostoievski, Camus, Cioran, Céline, Nietzsche, Carver, Cheever. Lima Barreto era seu autor preferido. 
O hospício, as alucinações provenientes do álcool, o escritor à margem, tudo isso, de certa forma, o aproximava do autor de O triste fim de Policarpo Quaresma. Sinto que desperdicei várias oportunidades de questioná-lo a respeito desses livros. Nunca o vi conversar com mamãe sobre literatura. Seu apreço pelas palavras permaneceu inconfessável, mas tenho certeza de que ele teria muito a dizer caso fosse dado a chance de manifestar suas impressões.
Certa vez, papai me levou a uma feira de rua, no Dia das Crianças, com a intenção de me dar um presente. Disse que eu podia escolher o que quisesse. Paramos em frente à barraca de brinquedos. Ele, ao meu lado, silente, a me observar, fumando seu cigarro, enquanto eu perscrutava com meus olhares a aquarela de cores, ávido por levar para casa tudo que conseguisse carregar. Mas papai disse só um. Apenas um. Quando me deparei com uma lousa mágica, rosa, onde se podia escrever com uma caneta especial e depois apagar milagrosamente para escrever de novo, infinitas vezes, meu coração acelerou. Era aquilo que eu queria de presente. Mas não era tão simples. A lousa mágica, ornada de ursinhos coloridos, era um brinquedo de menina. Hesitei. Olhei para papai, que me encorajou com um sorriso. Eu não podia decepcioná-lo, não no dia especial em que tiraria do orçamento uma quantia considerável para gastar comigo. Apontei para os carrinhos que corriam numa pista em forma de oito. Papai pagou e voltamos para casa. Bastou avistar mamãe e desembrulhar o presente, para que eu começasse a chorar de soluçar. Eu ainda pensava na lousa mágica. Tentei não decepcionar papai, mas em lugar de sorrisos de felicidade, o que pude oferecê-lo foi uma torrente de lágrimas. Incrédulos, papai e mamãe entreolhavam-se sem saber o motivo do meu pranto.
Mais um segredo.
Entre tantos.
Nossa advogada recomendou que escrevêssemos uma carta à juíza responsável pelo caso.
Quanto mais honestos fôssemos, melhor.
Sara, a garotinha por quem lutamos pela adoção, veio passar um fim de semana conosco. Última fase de um rito processual que se arrasta por longos meses. Um teste de habilidade paterna.
Está dormindo na cama, ao lado da escrivaninha, de onde posso vê-la.
Tem apenas quatro anos e não vê problemas em ter dois pais.
Eu e Carlos, depois de dez anos juntos, decidimos aumentar a família. Não fazíamos ideia do quão penoso seria. Sara nos chamou atenção desde a primeira troca de olhares. Sorriu assim que nos viu.
Na carta, deveria expor os reais motivos (como se o amor pudesse comprovar-se dessa forma), nosso desejo por filhos, nossas boas intenções, além de reforçar nossa conduta exemplar. Eu era arquiteto. Carlos, fotógrafo. Casa própria. Estabilidade financeira. Salários acima da média. Saudáveis. Faltava apenas um filho.
Mas só consigo pensar em papai. Na sua morte. No quanto sofri com sua ausência.
Daqui a pouco, Carlos vai dizer que o jantar está pronto. Perguntará sobre o texto, tarefa a qual me confiou por acreditar que escrevo muito melhor que ele.
Sara acorda.
Seus olhos de azeviche brilham na semiescuridão do quarto.
Desisto do texto. Apago o que já escrevi.
“Prefiro morrer a voltar para aquele lugar”, papai me disse na noite em que voltou do manicômio. Sem entender direito o teor de tal declaração, surpreendeu-me o fato dele ter-me confidenciado parte de sua intimidade.
Morreu pouco tempo depois.
Carlos bate na porta e põe a cabeça dentro do quarto. Quer que provemos a massa e o molho especial que aprendeu a fazer num programa de culinária. Pede que eu escolha o vinho.
Lanço à Sara um sorriso.
Ela retribui com outro sorriso.
Toda a coragem que preciso para enfrentar a audiência no dia seguinte.
E trazer Sara para casa, definitivamente.


Mike Sullivan (São Paulo, Brasil). É psicólogo e escritor. Publicou os seguintes livros: Corpo sepulcro (2015), O inferno é logo ali (2017) e Ninguém me ensinou a morrer (2018). O romance Corpo sepulcro recebeu Menção Honrosa no concurso nacional de literatura Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 2014.

Publicado por:Philos

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