Assim como é necessário dedicar-se a alimentar o corpo e praticar atividades físicas para mantê-lo ativo, é preciso cuidar, nutrir e exercitar a mente para mantê-la saudável.
O que entra em contato com nossos sentidos — o que tocamos, vemos, ouvimos, degustamos, cheiramos — é alimento ingerido pelo espírito, e esse alimento, consumido diariamente, pode ser tóxico, como sugere o monge budista Thich Nhat Hanh, porque às vezes contém violência, ânsia, medo, raiva e desespero. Tudo o que vivemos, dos mais simples acontecimentos aos grandiosos eventos da vida, são sementes de diversos sentimentos — no terreno baldio da mente humana, fatos se plantam e brotam em felicidade, esperança, amor ou em tristeza, desespero e ódio.
A mente é sua e você deve escolher o que guardar nela. A liberdade de consumo é um direito, também em relação ao que é intangível — notícias, ideais e comportamentos, por exemplo. Mas estamos nadando em uma enchente de informação, completamente imersos em uma goma, criação do marketing para fazer colar ideias. Escolhemos o que consumimos ou somos invadidos? O que permitimos entrar em nós?
Ser uma pessoa informada não é o mesmo que estar submerso, soterrado, em notícias — excesso oprime. Limitar o tempo da “refeição” do espírito e selecionar o “alimento” são atitudes saudáveis. Você passa a manhã inteira à mesa do café da manhã?
De forma mais frequente do que deveria ser, esquecemos as coisas simples que nos cercam, e investimos toda a energia em consumir o que a mídia entrega. Trocamos a alegria de compartilhar amor e respeito pelo sentimento efêmero de sucesso, aquele cuja medida são curtidas e seguidores nas redes sociais. Dessa maneira, às vezes xingamos, difamamos, com uma coleção de palavras perfeitamente combinadas para humilhar aqueles que, aprendemos com a violência que nos alimenta, são inimigos por terem pensamentos diferentes dos nossos — se não “deu match” ignoramos o ser humano.
A consequência é: esquecemos de vivenciar a vida para viver algo pré-construído pela mídia, um projeto de fortalecimento do status quo que, conservador, envolve-nos no entendimento de diferenças como parâmetros para estabelecer relações de poder e dominação. Alimentar o desejo de violência é interesse conservador, porque uma sociedade fundamentada no ideal de uma ética do amor volta-se contra políticas públicas de dominação.
Então você pensa que a sociedade está ficando cada vez mais violenta? Bem… está. E a responsabilidade é nossa. Porque somente distribuímos o que temos em nós, e o que temos é, em grande parte, o que consumimos. Quantas vezes ao dia você vê compaixão e paz nos jornais? Quantas vezes ao dia ouvimos falar do amor — ao próximo e a si mesmo? Pensamentos de amor não são lucrativos. A lógica capitalista em que vivemos precisa do seu anseio material. No entanto, esse conceito de que acumular bens materiais é urgente ameaça a segurança social. A ganância impede o desenvolvimento de uma consciência voltada para a compaixão e dificulta relações de amizade e comunalismo; em consequência, ações sociais se tornam até mesmo suspeitas. Em tempos de crise, a moral individual passa a ser mais questionada do que a moral social.
Mas nós “interssomos” neste mundo: você, com a pessoa que escreveu este artigo, com quem está no apartamento vizinho ao seu, com a pessoa de quem se lembrou hoje ao acordar e tantas outras. Existem elementos que não são você em sua composição, em sua essência. Isso é “intersser”. Assim como seu corpo físico é reflexo da ingestão de nutrientes e de transformações químicas, sua mente é resultado dos elementos com os quais você a alimenta — mente mal alimentada sofre de desnutrição —; você é o que faz com aquilo que consome.
Vá a um shopping center em época de liquidação e você poderá consumir em um frenesi de quem não pode perder a oferta, ou poderá olhar os produtos enquanto caminha pelos corredores e refletir sobre não precisar se engajar no prazer fugaz do consumo inconsciente. Para satisfazer seus desejos é mais necessário voltar-se para dentro de si, do que para dentro de um centro comercial.
Da mesma maneira, podemos nos relacionar com a mídia: ou consumimos e digerimos com consciência, em “refeições” balanceadas, ou andamos como zumbis pelos espaços, reagindo como mortos-vivos conduzidos por um sistema cruel que deseja nada além de matar a alma — o esvaziamento de corpos que construirá consumidores irracionais e replicantes. A escolha é de cada um.
Construir-se um amoroso guerreiro pela paz é possível, mesmo em meio ao caos. Sua intenção definirá os efeitos, em si mesmo e nos outros, daquilo que você faz. Está em questão o que impulsiona indivíduos a replicar informação. Beneficiar ou prejudicar? Generosidade na entrega e na escuta ou reconhecimento material de uma ação? Ninguém está bem. Todos os seres humanos estão sujeitos a perder, enlutar-se, entristecer, frustrar-se, temer; estamos sujeitos à impermanência — “onde está a neve do ano passado?”, perguntou o poeta francês François Villon. Admitir isso nos permite conversar com mais tranquilidade e honestidade, porque não teremos que competir, mas desejar e esperar o bem-estar de todo mundo e lutar por ele, afinal, nós interssomos.
Portanto, enquanto batemos perna na enchente e lidamos com o visco do que é pré-concebido, é necessário ter intenção de transformar o sentimento: desapegar-se do que é negativo e buscar o amor. Transformar raiva em compaixão — livrar-se do ódio significa abrir-se, mente e coração, para o mundo e produzir aprendizado. Transformar medo e desespero em esperança — porque os menores atos têm valor e são capazes das maiores mudanças, e acreditar que não há o que fazer é abrir mão da liberdade de agir e se inscrever para receber uma carga pesada de arrependimento.
Quando vivemos em contexto de violência, de agressividade exacerbada, valorizar o amor é ainda mais necessário. Não há milagre que faça sofrimentos desaparecerem, mas ações podem transformá-los. Essa é a alquimia do amor. Essa é a prática de transformar nossa batalha diária em ativismo pela paz. Porque se uma pessoa é capaz de transformar, para si, tumulto em paz, bilhões de pessoas juntas transformam o mundo.
Ana Luiza Libânio (Rio de Janeiro, Brasil). É feminista, escritora, roteirista e tradutora. Graduada em Letras pela UFMG, mestre em Literatura e especialista em Estudos de Mulheres e de Gênero pela Ohio University, com Formação em Direitos Humanos pela UEMG. É idealizadora do projeto de educação para o feminismo O Futuro é Feminista. Publicou o ensaio The Autonomous Sex (Lambert Academic Publishing, 2010), o romance A história de Carmen Rodrigues (Ser Mais, 2014) e a coletânea de contos 17 (Quinta Edições, 2018).