O inverno mal acabara e o sol já deixava marcas pelo chão. Um mosaico de rachaduras se expandia por todo o leito de um rio antes transbordante. O inverno fora insuficiente e o verão surgia com mais força. A mandioca estava chegando ao fim e a fome começava a tomar a região. Em uma humilde residência – um barraco de taipa caindo aos pedaços – Rômulo lamenta a falta de sorte e a miséria.
– Meu Deus, o que darei de comer aos meus filhos? Exclamava ele sentado num velho banco de madeira, olhando para os pequenos correndo pela frente da casa à beira da ruína.
O seu olhar era de um tom tão triste, sentia-se inútil e impotente. Sua esposa não resistira ao parto do último filho, e as duas crianças, uma com dez e a outra com oito anos, não têm perspectiva de vida.
O que havia da farinha foi servido no almoço com os dois ovos que restavam da magra e raquítica galinha. Na hora da refeição, com as porções bem medidas, um dos filhos indaga ao pai:
– Estou com fome! Quero mais.
Rômulo com os olhos encharcados, responde:
– Meu filho, só tem isso, não temos mais nada…
O garoto conformado abaixa a cabeça e sai da mesa ao mesmo tempo em que o pai se rompe num choro silencioso.
A situação estava difícil e ainda iria piorar. Passam-se dois dias sem que nem sequer uma migalha de pão chegasse à mesa. Sentado no seu banquinho, Rômulo observa um de seus filhos arriado, aos prantos, num velho colchão, no chão da casa. O garoto mais novo mal conseguia ficar em pé. A fraqueza percorria sua carne e a fome não o deixava em paz. Restava apenas dormir, a única coisa que lhe trazia paz, apesar das turbulências e a febre que consumia o seu corpo. Lá fora, o chão torrado pelo sol e os ossos da única galinha que tinham. Morrera de fome, pois nem no chão encontrava algum alimento. E o filho mais velho, ao lado do animal morto, misturava o barro com água e, da mistura, fazia o seu pão.
O sol já se punha no horizonte. Mais uma noite e novamente um novo dia, uma nova luta contra a fome. O garoto doente delirava de febre, a sua pobre dieta dos últimos meses minara suas energias. Seu coração pulsara lentamente até dar a última badalada num suspiro de desespero e, ao mesmo tempo, de alívio, pois acabava o seu sofrimento. O pai atordoado vê a cena e verte lágrimas que encharcam o chão. O outro menino, em profunda diarreia, mina-se no chão encostado ao pai. O seu gemido de dor só é interrompido quando o vento ecoa no velho telhado, todo furado pela ação do tempo. Novamente o menino chora ao mesmo tempo em que, sem força de se levantar, faz suas necessidades ali mesmo.
O sofrimento perpetua-se por toda manhã. Uma escuridão toma a vista de Rômulo, que sente, no seu íntimo, o fim próximo. Levanta-se, vê a casa rodar, segura-se na parede, vai ao fundo da casa e pega uma enxada. Sai rumo à vasta imensidão vermelha, o verdadeiro vale da morte. Abutres o sobrevoam. Ossadas de animais, acompanhadas de restos da carne, são ornamentos da funesta paisagem. Num determinado ponto, para e começa a cavar três buracos. Ao terminar, quase desfalecendo, retorna à sua casa e encontra o menino dando os últimos suspiros ao lado do corpo frio do irmão. O pai toma o mais novo em seus braços e sai da residência em direção aos buracos. O garoto é molhado com as lágrimas do pai que deposita o cadáver no buraco e o cobre de terra. Torna a casa para pegar o segundo garoto e novamente voltar ao jazigo. O segundo garoto é posto na cova ainda quente e coberto de uma rala camada de terra. Por fim, Rômulo se deita em sua vala para esperar o beijo da morte. A procissão funesta durara a manhã toda. Ao meio-dia, Rômulo definhava. Um abismo se abria abaixo dele e o sol a pino escurecia. O calor, antes insuportável, dissipava-se em leve brisa de outono. Os seus olhos abertos perdiam o brilho enquanto uma gota de chuva caía em seus lábios ressequidos pela sede. E um sono profundo o tomou.
Quando acordou, entre uma bela campina florida rodeada de uma pomar, o seu sofrimento passara e o seu corpo debilitado recobrara as energias. Ainda meio zonzo, levanta e, quando apruma a visão, vê ao longe a sua esposa e os dois filhos sorridentes, vindo ao seu encontro. Emocionado os abraça com ternura. E de mãos dadas, adentraram naquele paraíso de múltiplas cores.


Lucas de Carvalho Dantas (Sergipe, 1994). Poeta, músico e contista.

Publicado por:Philos

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