A noite espreita, pela varanda, seus pontilhados esparsos de estrelas. Meu pequeno livro de consulta, meu vinho, meu caderno e meu cigarro. Eu olho para o silêncio lá fora por um momento e procuro me lembrar do que eu fui. Tento me esquecer do que me invade nos dias vazios. Eu não poderei saber o que seria se não tivesse sido com você. E isso me assusta. Tenho horror da certeza de que você moldou quem eu sou, de que eu jamais poderia ter sido esta – que escreve, que chora, que ama – se você não tivesse existido. Eu te amei. E amei, digo assim, no meio do parágrafo, porque essa certeza me corrói, me destrincha, me estrinça.
Eu jamais poderei esquecer você. Você me fez.
Estive olhando para a noite nublada, de prédios encardidos. Desço o elevador, saio à rua. Os carros quase não passam na madrugada quente. As pessoas não existem. Existem apenas as almas solitárias, os bêbedos desiludidos, as crianças desamparadas, as moças que trabalham. E essas almas não são na noite o que se pretendem no céu claro. Elas são escravas da rotina, e procuram fugir dos pensamentos incômodos.
Queria poder fingir nas horas vagas, mas sou feita de verdade. E a verdade me atormenta, não me permite aproveitar as madrugadas nos sonhos. É porque, eu digo, preciso escrever, preciso me libertar e me ferir. Preciso me desnudar e mutilar e manchar o papel com meu suor, minha saliva. E digo: escrever sempre me dói. Mas é dor que me liberta do mundo de farsas.
Somos todos artistas desprovidos de sua arte. Vagamos pelo mundo sem um mundo para vagar. Eu poderia sentar num belo Café, pedir um pouco de chá. Sim, senhor, obrigada. E polidamente tirar meu caderno preto da bolsa, uma caneta (bonita, sempre bonita) e anotar com parcimônia os meus mais profundos e belos pensamentos. Mas a verdade é que não é com tal facilidade que as palavras surgem no meu papel. Eu sofro. E não sei viver sem sofrer. E é assim que escrevo. E de tal melancolia tiro proveito.
Eu sento no meio-fio. Um homem robusto vai se aproximando na calçada. Não tenho medo. Nunca tenho medo dos homens quando se aproximam em sua brutalidade sincera. Tenho medo dos que – sim – parecem muito suaves no andar. Ele se senta ao meu lado. Oferece um cigarro. Quero dizer que não fumo, mas aceito. Ele não me olha.
O som perturba a rua. Os cães ladram.
Tomo mais um gole de vinho. O homem do meio-fio vai se esvaindo. Primeiro, seu rosto sem fisionomia. Depois, seus dedos, suas pernas e seus cabelos negros. Minha boca está seca, minha língua áspera. Sinto-me cansada, mas otimista. Uma melancolia afaga meu peito e sinto vontade de correr. Correr, correr, correr. Não queria ter esse ímpeto da escrita, a maldita arte de qualquer um. Não são todos que se fazem pintores ou escultores, muito menos músicos, mas quantos e quantos se dizem escritores. E sou mais um deles, traça de livros empoeirados. E o que me diferencia dos demais? Minha dor, minha dor? O sofrimento e a necessidade, a força que sinto em cada sílaba, em cada instante que meu punho corre o papel? Pois sinto que minha alma se esfacela, que morro aos pedaços, que vou me deixando, me empoeirando, me matando, me corroendo. Sinto que o que escrevo é nada, que é tudo, o mundo distorcido dentro de mim. É confuso. É íntimo. É eu. E parece que estou afogada nas mesmas feridas, emaranhada de perversão, de obsessão, de submissão. O que restará disso tudo? Quem lerá o meu fim?
Quando meu coração se cansar, todo o mundo irá com ele?


Luizza Julianelli (Rio de Janeiro, 1998). Vencedora do Prêmio Ariano Suassuna em artigo de opinião e poesia e do Prêmio Mário de Andrade em contos do Colégio Pedro II. Premiada pela Revista Ôxe! na sessão de poesias. Colaborou com a Revista Desenredo.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Noites de madrugadas de farsas, por Luizza Julianelli

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