A caminhonete fez uma curva suave para a esquerda, entrando finalmente na estrada de terra que levava a Relicário. O tempo estava seco, como fora nos meses de junho e julho e, pelo retrovisor, eu podia ver a poeira do barro fino do chão formando grandes lufadas vermelhas, contrastando com o verde da vegetação que margeava todo o antigo caminho com um céu absolutamente azul, sem nuvens, como eu não me lembrava ter visto algum dia por ali. Relicário, a fazenda de meu pai, de nossa família, finalmente surgiu no fim da estrada sinuosa, por entre galhos de árvores mudas de suas folhas, folhas que antes davam voz ao vento. Relicário, eu dizia, avultou-se como um fantasma: austero, solitário, parvo, pesado, com um ar estúpido, cansado. Parecia me olhar com raiva, por ter seu descanso interrompido por mim naquela tarde. Eu era um intruso em meu próprio passado. Desci do carro e contemplei suas paredes vetustas então cobertas de musgo e solidão. Não mais nossas vozes, não mais os gritos de ordem para os camaradas, não mais o relincho dos garanhões no pasto, das vacas reclamando a ordenha ou de mamãe chamando para o almoço. O silêncio desabava agudamente sobre o vozerio ininterrupto das tantas gentes que me habitavam; em vão, seu peso tentava silenciá-las, uma após outra. Cada um desses habitantes subia o tom da voz, como um mercador, na ânsia de atraírem compradores para seus produtos. Acendi um cigarro. Então avistei o poço. O poço. Caminhei até sua borda. Minha infância, aos poucos, voltava a vibrar em meu corpo, como os formigamentos que vão se alastrando pela carne num tremor morno: um braço, uma perna, um pé, que, conforme se diz, ficaram dormentes. E novamente abandonei o presente, transformando, no redemoinho do afogar-me em mim mesmo, toda a paisagem externa e também meus contornos físicos: voltava a ter meus nove anos. Meu irmão gritou lá de fora: – Vem ver, Gláucio, seu dorminhoco! Sai dessa cama! Papai trouxe um pastor! Ele não sabia, mas eu já estava acordado e tomava meu desjejum. Deixei o pão com manteiga e a caneca de café com leite na mesa da sala de jantar e saí pela porta principal, descendo as escadas quase tropeçando nas barras de meu pijama.
Glauco, meu irmão gêmeo, já estava segurando a coleira do animal; e sorria triunfante, como se mostrasse para mim o valor de acordar cedo todos os dias, com papai. Era um cão adulto, mas ainda jovem. Meu pai sorria ao lado dos dois. Mais uma vez, papai dera a Glauco a primazia pelos prazeres das pequenas responsabilidades; de novo eu me atrasara. Mamãe reclamou: – Ai, Chico! Mas pra que mais um cachorro? Já não temos um? – Deixe, mulher! O Tigela está velho. Já, já ele nos falta. Achamos esse aqui na estrada do Matondo e parece que é manso.
Mas eu já conserto isso. Vai dar um bom cão de guarda! Não mentia ele; Tigela era um vira-lata magro que passava os dias ou dormindo na soleira, ou lambendo erupções na pele causadas pelos bernes. Latia só de vez em quando, sem a mínima necessidade, pela aproximação de alguma visita e nada mais. Posso não estar bem certo quanto à duração dos fatos, pois a memória muitas vezes nos engana, mas acredito que foram dois meses de agonia. Meu pai mantinha o pobre cão preso a uma estaca próxima ao poço, dando-lhe talvez o suficiente para não sucumbir; à pouca comida que lhe dava, acrescentava pimenta. E açulava-lhe com uma vara pontiaguda, instigando-lhe a raiva. Mas bem se via que aquilo não estava dando certo; o pastor era de outra natureza; não mudava sua boa índole. Meu pai sim, a cada insucesso, parecia mudar o que eu supunha ser a sua. Passou a bater nele ritualisticamente; no começo de forma comedida; depois, com mais força. O cão gania, lacerando meus ouvidos e também a alma. Eu e meu irmão presenciávamos essas surras; imóveis, como os mourões que cercavam nossas terras, nada falávamos. Nos olhos verdes de Glauco, eu buscava um pouco da piedade que devia sobejar nos meus. Meu pai parecia perceber meu incômodo. E me olhando sério: – Ele vai ficar bravo! Ora se vai! – e aumentava a força das pancadas. Minha mãe se escondia nos fundos da casa, sabendo que pouco poderia fazer para convencer meu pai do contrário quando ele metia uma ideia na cabeça. Um dia, ao amanhecer, após uma noite inteira de agonia, em que o cão parecia suplicar até por sua morte, ganindo e uivando num lamento vagaroso e sem descanso, levantei da cama antes mesmo de papai e Glauco, corri até o poço e soltei o nó da corda que apertava o pescoço de meu amigo canino. “Ele nem teve tempo de me agradecer”, interpretei naquele instante; correu e se enfiou na mata. Apanhei muito de meu pai nesse dia; parecia para mim, enquanto era surrado, que eu levava as pancadas que o pastor, fugido, deixara de levar. Meu pai saiu com Glauco atrás do animal e, após algumas horas, encontraram-no metido numa touceira não muito longe do portão de entrada da Relicário. Trouxeram-no de volta e o puseram na amarração perto do poço novamente, onde ele havia ficado horas a lamber suas feridas. De castigo e com dores pelo corpo, eu acompanhei da janela a chegada dos três. Meu pai ordenou que eu fosse até o terreiro, o que fiz imediatamente. Lá chegando, ele me passou uma borduna, bem diferente da vara com que ele costumava açular o cão. Imediatamente entendi o que ele queria, nem precisaria falar mais nada; mas ele falou: – Esse bicho fujão tem de aprender a não fazer mais isso! E você – gritou apontando para mim – tem de aprender a ser homem! Castigue-o! Eu olhei para Glauco; tínhamos a mesma expressão, que eu julguei – pela natural impossibilidade de ver meu próprio rosto – fosse de incredulidade, de surpresa, de horror, como certamente era a minha. O medo me paralisava, mas ainda isto: não havia nada em mim que me movesse em direção àquele animal para tocar minimamente em seu corpo no intuito de lhe impingir a mínima dor.
Em busca de auxílio, mirei o verde dos olhos de meu irmão, procurando novamente algo de mim ali. E foi então que aconteceu. Naquele momento, eu presenciei, como, no meu entender, dificilmente alguém costuma presenciar na vida, exatamente como nascem os homens. Glauco arrancou de minhas mãos a borduna e, como que possuído por algo que jamais existira, existia ou viria a existir em mim, deitou tantas pancadas no pastor, que terminou por quebrar-lhe as cadeiras, inutilizando-o de vez. Eu não me reconhecia mais naquele rosto que, estranhamente e apesar de tudo, era também o meu, no verde veneno daqueles olhos despidos do verde amedrontado dos meus. Mesmo meu pai pareceu temer ao que acabáramos de assistir; como se algum limite tivesse sido ultrapassado inapropriadamente. Durante a madrugada, com um tiro, único e seco de sua espingarda, meu pai concluiu a obra de meu irmão. Foi-se sem ao menos o direito de ter ouvido de nossas bocas um nome que lhe coubesse; no tempo que ali padecera, todos o chamávamos tão somente de o pastor. O ribombar de uma trovoada, num susto, me trouxe de volta ao presente, a Relicário, à intensa luz branca da tarde, ameaçada agora por nuvens negras que se encapelavam manhosamente no topo dos morros distantes; era a chuva que chegava.
Novamente o musgo, as paredes vermelhas de barro, as janelas desfolhando-se em lascas de tinta e páginas de sua própria madeira, a secura dos galhos retorcidos das velhas árvores ao redor do terreiro, o fantasma aborrecido daquele lugar reprovando minha intrusa visita. Meu cigarro terminara, sem que eu conseguisse lembrar se o tragara sequer uma só vez naqueles instantes de devaneio. Ali, na boca daquele poço, limite entre a escuridão de um subterrâneo úmido, líquido, pastoso, e uma superfície pétrea que me inundava de luz, ali eu vivenciara, há tantos anos, a encruzilhada. Eu e meu irmão fomos gêmeos por exatos nove anos e nada mais. A partir dali, seguimos caminhos opostos. Ele se tornou um tipo de homem; eu, outro. Dizem que a morte de mamãe se deu em função de desgosto; eu só posso imaginar que sim. Pensar que um dia levara em seu ventre o frio assassino em que Glauco viera a se transformar não poderia tê-la conduzido a outro fim. O gosto dele, ou seu vício por drogas, dor e sangue conduziu-o ao cárcere, não sem antes consumir, com advogados, todo o patrimônio de papai, a quem um infarto colhera fulminante. Paradoxalmente, drogas, dor e sangue também passaram a fazer parte de minha vida, mas de um modo bem diferente: a medicina veterinária hoje se confunde com minha própria personalidade e com meu projeto de existência. Abaixei-me ao lado do poço e fechei no punho um tanto de terra preta, fria, bem no local onde anos atrás aquele cão vivera sua terrível paixão. Relicário não suspeitava do real motivo de minha visita repentina naquela tarde: bem-sucedido em minha carreira, eu juntara dinheiro suficiente para tê-la de volta; não para trazê-la novamente à vida, que isso era impossível – o passado é um ente morto a assombrar-nos por dentro –, mas para lhe proporcionar uma vida inteiramente nova, a partir mesmo do nome. Pensei em chamá-la, por justiça e adequação, quando novamente estivesse em pé, “Santuário para Animais Fazenda do Bom Pastor”.


Marcelo Ferreira de Menezes (Rio de Janeiro, 1968), contista e poeta, é professor de Redação da Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAR), em Guaratinguetá, São Paulo, onde reside. Mestrando em Linguística Aplicada pela Unitau-SP, é editor da Revista Atrium, ISSN 2446-7219.

Publicado por:Philos

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