Outro dia eu estava caminhando por Copacabana quando percebi uma movimentação curiosa na praça Serzedelo Correia. Algumas pessoas se aglomeravam ao redor de um homem incomum. De pé sobre o banco, muito magro, estava vestido como um personagem indiano de novela. Barba longa e grisalha, pele morena, turbante na cabeça. Segurava uma placa nas mãos. “Segredos da vida a cada 5 minutos”. Aos pés, tinha uma cestinha para doações. Algumas pessoas paravam para olhar, outras desistiam e seguiam seus rumos. O indiano continuava mudo, olhar sutilmente alegre. Se eu fosse um pouco mais cínico, talvez dissesse que seu ar era jocoso. De repente, ouço um grito. “Você aqui de novo? Essa não!”. Era um homem de terno preto, carregava uma maleta fina de couro. Aparentemente enfurecido, cruzou o pequeno aglomerado sem a menor delicadeza com a plateia, subiu no banco e se postou ali, de pé, na outra extremidade, igualmente em silêncio. Suas duas mãos seguravam a alça da maleta. Indiano e executivo se entreolharam por alguns segundos. Foi tudo tão sincronizado que suspeitei haver uma encenação ali. Repito as falas de memória, mas o que disseram foi mais ou menos o que segue. O indiano se voltou para a plateia e falou pausadamente: — O segredo da felicidade são os relacionamentos — e voltou a ficar em silêncio. Foi a deixa para o executivo iniciar uma curiosa bravata.
— Ele diz isso, mas tomem cuidado. Eu acreditei e me dei mal. Relacionamento é sempre com o outro e o outro o não tá nem aí pra você. — O executivo parecia comovido. — Quer ver? Por que o outro não fez do jeito certo, então? Por que não considerou a minha situação? Afinal, não era uma situação qualquer, era eu, eu de tanto sofrimento, eu das sabidas dificuldades, eu justamente naquele dia. Se fosse em qualquer outro dia não tinha problema, eu nem ligava. Mas justamente naquele dia aquela pessoa escolheu aquela atitude que me obrigou a reagir daquela maneira. Não tive escolha. O que é que eu posso fazer? Pensar em si, ah, isso todo mundo pensa. Talvez só pensem nisso. Mas nos outros, ah não, nos outros ninguém pensa. Se o segredo da felicidade está nos relacionamentos, ah então só se vai colher tristeza por aí. — Havia uma intenção meio desesperada no tom de fala do executivo, a voz tremia um pouco, ele insistiu — E não venha alegar que não sabia, não tinha como saber, que eu não avisei, que tinha lá os seus motivos. Que motivos? Tinha como saber, sim. É óbvio o que os outros esperam de você. Não ouviram essa sobre o segredo da felicidade? Relacionamentos. O que me inclui, sabia? No que é que o outro estava pensando que não pensou na frustração que sua escolha geraria para mim? Estava pensando em si, o que é imperdoável. Não tem desculpa. O segredo da felicidade, diz esse bobão aqui, são os relacionamentos. Ah mas o meu relacionamento não, não o meu! — Finalmente ele parou. Tinha gesticulado muito. Olhei para o relógio, cerca de quatro minutos se passaram. Ao longo do discurso, o indiano não se abalou, seu sorriso permaneceu intacto. Então, após um pequeno hiato de silêncio, foi a vez do indiano, novamente.
— O segredo dos relacionamentos é a humildade — e se calou, sereno, era como se estivesse sozinho. O alto do banco de concreto era o seu altar. Mas a realidade é que aquilo era apenas um banco público, tinha outro homem de pé ali ao lado dele, e disposto a contradizê-lo. O executivo voltou à carga.
— Ah, ele veio me contar esse outro segredo também, ignorei. Que arrogância são essas fórmulas prontas. Meu querido, cadê a humildade dessa frase, então? E as particularidades de cada um? Não sejamos estúpidos. Não vê que essas generalizações são burras. O ser humano não é todo homogêneo, não. Não é massa de manobra desse seu raciocínio simplista e generalista, não. — Mesmo as palavras mais agressivas soavam com um tom aconselhador, o executivo agora palestrava, já era menos emotivo — Pensando bem, quer saber?, humildade pra mim é respeitar a particularidade alheia, só isso. Cada um faça o que quiser, eu não tenho nada a ver com isso. Ah, mas se vier me perguntar, aí eu digo, é bobagem, isso aí que você acredita não merece a menor consideração, não tem lógica. Mas eu é que não vou cair na burrice de querer mudar as pessoas que não pediram pra ser mudadas. Então, se o segredo dos relacionamentos é a humildade, talvez isso seja, sei lá, não tentar mudar aquela pessoa que está no erro. — A plateia se entreolhava o tempo todo, o clima geral era de constrangimento e curiosidade. O executivo prosseguia — Então, humildemente eu me permito refletir um pouco, me dou o benefício da dúvida. Isso sim é ser inteligentemente humilde. Devemos ter a humildade de deixar os outros se consumirem na própria ignorância egoísta. O que o bom velhinho aqui deve estar querendo dizer é, aposto, que a gente tem que reconhecer que nunca sabe de tudo. Eu sou assim. Tipo um Sócrates. Essa humildade é que me levou a saber tudo o que sei. Isso quer dizer que eu sei tudo? Claro que não. Ainda falta muito. Mas dá pra saber algumas coisas. Ouçam o que vou dizer. — Nesse momento ele apontou para a plateia, balançava o dedo indicador em riste. — Dá pra saber que tem muita coisa imatura, pessoas simplórias, muita gente que não estudou, muito maluco. — Não contive uma gargalhada quando disse isso, acho que ele percebeu, mas continuou. — Tem muito desavisado refastelando-se na ignorância. E ainda acham graça! Não dá pra entender isso. Coitados. Mas eu não tenho pena, não. Por que tem cada um, tem cada atitude, cada comportamento, que, ora, isso eu aprendi, eu posso até fingir, mas tolerar não dá. Não me venha pedir pra aceitar humildemente, não. Com gente irracional eu não consigo conviver! — E se calou, ofegante. Pensei ter visto uma lágrima, mas era suor. O sol rachava, a sombra das árvores não dava conta. O indiano ameaçou voltar a falar, mas soluçou uma gargalhada incontida. Pressenti algum segredo em seu olhar. Fingiu tossir. Olhou rapidamente para o executivo, que o encarava também, e retomou o olhar para a plateia. O clima agora era de expectativa.
— O segredo da humildade é a autoconfiança — Dessa vez o indiano se dirigiu ao executivo assim que terminou. Queria ouvir a resposta. E ela veio.
— Basta com esses segredos! Quem aguenta? Ser autoconfiante e humilde ao mesmo tempo?! Conta outra. Pois bem, senhor autoconfiança, se o senhor é tão autoconfiante assim, convenhamos, então o senhor também não é lá essa humildade toda, não. Não é mesmo?! E o pior, eu me pergunto, confia é? Se confia, confia no quê? Tá por cima da carne seca? Olha, tá bem vazia a sua cestinha de doações. Pô, vamos colaborar, gente. — Agora era puro sarcasmo o executivo — Tá achando, já sei, que não vai errar, que não pode falhar, que já sabe das coisas. Quanta capacidade, quanta inteligência! Sinto lhe informar, o ministério da sanidade informa, não há garantias. Repita comigo, nada garante nada. Pode ser um novo mantra, olha aí! E não adianta dizer que confia no outro porque isso não tem nada a ver com autoconfiança. Autoconfiança é acreditar em si, na sua capacidade, na sua potencialidade apesar do destino. E apesar dos fracassos. Aí é que está o furo, se é pra confiar, confie nisso, os fracassos virão. Então autoconfiança é uma mentira, um desejo infantil de heroísmo! Então não me venha mais com essa felicidade vulgar de almanaque. E pare de enganar os outros! — o executivo se calou. Pegou a cestinha do indiano e mostrou para a plateia o conteúdo quase vazio. Como se quisessem contrariar o executivo, algumas pessoas aproveitaram esse momento para fazer suas doações ao indiano. O executivo botou a cesta de volta no lugar e aguardou a sua vez. O indiano tomou fôlego longamente antes de falar.
— O segredo da autoconfiança é…
Olhei o relógio e levei um susto, eu já estava bastante atrasado. E aquilo podia durar o dia todo. Saí apressado, mas me sentia bem. Copacabana nunca me decepcionava. Pelo menos isso.


Leandro Jardim (Inglaterra, 1979). É um escritor e letrista carioca, por acaso nascido na Inglaterra em 79. Formado em comunicação e pós-graduado em engenharia de produção. Professor na área de gestão, atualmente é mestrando em administração pela PUC-Rio. Publicou os livros ‘A angústia da relevância’ (Romance, 2016), ‘Peomas’ (poesia, 2014) e ‘Rubores’ (contos, 2012) pela Editora Oito e Meio; além de outros dois de poesia: ‘Os poemas que não gostamos de nossos poetas preferidos’ (Orpheu, 2010) e ‘Todas as vozes cantam’(7Letras, 2008). Possui contos publicados em revistas e antologias, como “Porto do Rio do início ao FIM” (2012), “Veredas – panorama do conto contemporâneo brasileiro” (2013) e “Para Copacabana, com amor” (2013). Como letrista e cantor diletante, lançou os EP’s virtuais ‘O Sonhador’ (2014) e ‘Sementes musicais para um mundo cibernético’(2011) em parceria com Rafael Gryner. Nos últimos anos, outros artistas, como Clara Valente, Diogo Cadaval (banda Mocambo), e Matheus Von Kruger lançaram discos que contam com sua participação em algumas letras.

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