Nada te vai acontecer em contrariedade com os princípios do universo.
Marco Aurélio, Meditações
Simónio era inútil. Sempre fora conhecido por essa palavra na pequena vila onde nascera e morava: inútil. Outros diziam: incapaz, desnecessário. Ou ainda: infrutífero, improfícuo, parasita. Na verdade, ele não era mesmo capaz de fazer nada. Chamavam-lhe muitas vezes a atenção: tu faz qualquer coisa, Simónio, faz-te útil. Mas Simónio não respondia e, envergonhado, baixava a cabeça e não dizia nada. Como não falava, revelava na ausência de palavras também a falta de capacidade para se exprimir.
Quando era ainda adolescente, tinha por hábito olhar-se no espelho. Por vezes murmurava para si mesmo: inútil é isto que sou. Passava as mãos pelo seu corpo, tocava no seu cabelo e nos seus lábios, e repetia: sou inútil.
Quando atingiu a idade adulta não sabia o que poderia fazer. Tinha desistido cedo da escola e não tinha qualificações nem competências para uma profissão.
Já passava dos trinta anos e Simónio ainda vivia em casa dos pais. Davam-lhe de comer, carinho, educação nos momentos necessários, local para dormir. Amavam-no talvez como quem ama um animal de estimação cuja função é a existência da sua presença.
O pai, especialmente, sentia um grande orgulho pelo filho. Ele via no nascimento um fatalismo do destino. Todos os homens devem seguir a sua natureza e orgulhar-se dela, dizia ao filho, não podes ter três braços e duas cabeças; esse é um desejo impossível de realizar. Podes sonhar com isso, mas não podes alcançá-lo. Se és inútil estás interdito de fazer parte das coisas úteis, não procures encaixar-te nessa lógica. És inútil e orgulha-te disso.
No entanto, até a sonhar Simónio era inútil. Um dia adoeceu por ter feito demasiada força para tentar sonhar. Teve de ser internado, mas depois de algumas horas no hospital foi enviado de volta para casa. O médico disse que ele não tinha talento para ser doente. Então é demasiado saudável, doutor?, perguntaram os pais. O médico respondeu que também não era muito saudável. Manter-se-ia num caminho sem especial inclinação. Os pais ficaram felizes porque o seu filho tinha recebido uma prescrição para continuar na mesma. Desde então, Simónio deixara de tentar sonhar. Simónio realizava por vezes grandes caminhadas ao ar livre num jardim em frente à sua casa. As pessoas cumprimentavam-no. Sabiam quem ele era. Toda a gente naquela pequena vila, onde Simónio nascera e vivia, falavam dele como o inútil da vila. Ali vai o inútil, diziam, vejam como ele anda, nem jeito para andar tem, vejam o seu rosto disforme, nem tem talento para a beleza, vejam o modo desajeitado com que coloca as mãos nos bolsos numa tentativa de se normalizar. Simónio caminhava consciente de todas essas observações. Toda a sua vida tinha-as escutado. À partida poderíamos pensar que esses comentários eram sentidos de forma pejorativa, mas Simónio, agora na idade adulta, já não os ouvia dessa forma. Aliás, eram comentários apenas evidentes da sua natureza e por isso ele por vezes até sorria, embora com um esgar de tal forma desastrado, que os outros não reparavam que ele sorria. Como as pessoas achavam que com os seus comentários o rebaixavam cada vez mais, continuavam a insistir em chamá-lo de inútil. Quando a pequena vila recebia visitantes, os munícipes diziam que eles tinham de se cruzar com o Simónio, de ver bem a sua inutilidade. Então, quando os visitantes o observavam na rua, durante esses seus passeios, riam-se dele, por reconhecerem imediatamente no seu semblante essa característica. O que de facto a generalidade das pessoas parecia pensar, para além do raciocínio jocoso que provinha da visão de Simónio e também da ideia do que dele viam, que era essa que já sabemos, a de que ele era inútil, contrapunham ainda, apesar de não o dizerem a ninguém, a inutilidade de Simónio com o papel que eles ocupavam no mundo, já que todos se achavam úteis e tinham a sorte de poderem ocupar um lugar coerente em vida. Essa coerência era como a força originária de uma felicidade espelhada numa única imagem do mundo, a imagem deles mesmos num único retracto. Ou seja, Simónio não fazia parte desse mundo.
Os pais de Simónio receberam um dia a visita de um psicólogo que, sabendo da condição do Simónio, os tentara convencer a fazer com que a inutilidade do filho pudesse servir para alguma coisa. A ideia do psicólogo era a seguinte: havia no infantário para crianças com deficiência mental, onde ele também trabalhava, falta de ideias para tornar o dia dessas crianças original e divertido. O que poderíamos fazer, propôs ele, seria vestir o Simónio de branco, apenas com uns calções e uma camisola e colocá-lo no meio da sala para que os nossos alunos o possam pintar. Simónio e os pais aceitaram. Ele apenas teria de estar ali, quieto à espera que o pintassem. As crianças pareceram entusiasmadas com a ideia. Entraram na sala onde estava Simónio sentado, com o seu corpo desajeitado e viram-no de branco, como que imaculado, no centro da sala fitando a porta onde as crianças, assim que entraram, pararam para observá-lo. Simónio não proferiu uma única palavra. As crianças entraram calmamente, algumas exprimiam sons de espanto, ou sorriam, outras avançavam com receio. De lápis de cor na mão, marcador, pincel, avançavam para o alvo a um ritmo comedido. Mas quando chegaram perto dele, nenhum deles decidiu pintá-lo. Pararam e observaram-no apenas durante vários minutos. O psicólogo que acompanhava os alunos da soleira da porta, levou as mãos à cabeça, mas não demorou muito tempo a aperceber-se do impulso daquele movimento, por isso isso decidiu sorrir. Nenhum dos alunos queria pintá-lo. Alguns pousaram os lápis, os marcadores e os pincéis, outros começaram simplesmente a pintar o chão e as paredes.
Apesar do fracasso, Simónio parecia imbuído com essa esperança proporcionada pelo psicólogo: a de querer pôr à prova todos os aspectos da sua inutilidade. Foi o próprio, até, que organizou, um dia, as seguintes diligências. Acordou de madrugada e dirigiu-se para a praça central da pequena vila. Despiu todas as suas roupas e deitou-se na relva. Quando amanheceu os munícipes que passavam pela praça viram e torciam os seus rostos de indignação, mas ninguém se aproximou. Minutos mais tarde, a polícia apareceu no local.
Dois agentes levaram Simónio para a esquadra. Na sala de interrogatório chamaram-no de inútil e libertaram-no nesse mesmo dia. Simónio estava feliz mas isso não era suficiente. Ele precisava de mais, de provar que poderia ser o melhor inútil do mundo.
Um acontecimento veio interromper a sua ambição. Dias mais tarde, Simónio entrava em casa depois de um passeio e deparou-se com o seu pai, deitado na sua cama, de olhos abertos, fitando o tecto. Quando viu o corpo do pai, Simónio não se apercebeu que ele estava morto. Voltou para a sala e sentou-se numa poltrona fitando talvez o vazio. Quando mais tarde a mãe, os vizinhos e alguns familiares rodeavam o corpo do pai, Simónio foi chamado e disseram-lhe que o pai estava morto. Ele sentia vontade de chorar, mas limitou-se a sentar-se na cama tocando levemente nos pés do pai. Simónio fez força para as lágrimas saírem. Depois levou as mãos aos olhos que estavam secos. Por fim refugiou-se na casa-de-banho e auto-flagelou-se com murros na sua própria cara. Mas nem assim. Tentou gritar mas saiu um riso desajeitado.
No dia do enterro do pai, que tanto se orgulhara dele, Simónio nada disse, nada fez, deixou que mãos alheias tratassem de tudo, que despissem o corpo, o voltassem a vestir, que o pusessem no caixão, que fechassem o caixão e que o levassem para o cemitério, que tapassem a campa, que levassem as flores, que segurassem no braço da sua mãe chorosa.
Tinha 40 anos, quando certo dia Simónio voltava do seu passeio e encontrou a sua tia sentada à mesa da cozinha. A mãe de Simónio estava com ela, e chorava. Assim que ele entrou, lançaram-lhe um olhar profundo de pena. A mãe achava que seria boa ideia, tanto para si mesma como para o filho, que este partisse para a casa da tia na capital.
Simónio nunca tinha vivido noutro local, por isso a mudança para uma cidade grande não foi fácil. No entanto, com o tempo, reparou que num ambiente urbano é difícil saber com exactidão quem é e quem não é inútil. Existe um espaço específico para se poder ser inútil sem dar nas vistas. Enquanto na sua pequena vila olhavam para ele apenas como um miserável, na cidade seria preciso aproximarem-se mais para o verem como ele era, como se na cidade estar atento fosse uma actividade realizada por certos privilegiados, talvez por um poeta ou um pintor. Por outro lado, a cidade é um local de consolidação do esquecimento. Quando na sua pequena vila as pessoas pareciam mais próximas umas das outras, esse calor humano transformava-se também em repulsa. Na cidade, por outro lado, era a repulsa que surgia primeiro. Por isso, na cidade, se queremos ser reconhecidos pelos nossos dons, somos obrigados a lutar contra esse inimigo feroz, que é o vácuo dos que não reparam.
A inutilidade de Simónio era agora na cidade não tão visível e isso tornava-o mais ambicioso para assumir-se inútil. Como ele sentia que na cidade a sua inutilidade não era evidente, isso parecia fazer com que ali todos, mesmos os úteis, parecessem inúteis. Depois de algum tempo na cidade, por causa da sua inutilidade para a realização de alguma actividade concreta, descobriu que podia realizar longas viagens de metro, entrando numa estação qualquer, e fazer a linha toda até à estação terminal e depois voltar para trás. Passava tardes assim, sem que ninguém reparasse nele. Esse embalo do metro, para a frente e para trás, ao longo de uma rota pré-definida, parecia apaziguá-lo.
Simónio passava praticamente o dia todo nas estações de metro. Ele pensava que, um dia, essa oscilação eterna das carruagens ainda iria fazê-lo sonhar. No entanto, continuou exactamente na mesma.
Uma outra característica da cidade era o facto de ter ouvido falar, de outros seus semelhantes. Ao que parecia, havia muitos outros inúteis habitando aqueles curtos quilómetros quadrados de edifícios, avenidas, jardins e túneis, outros seres humanos tão dispensáveis e desnecessários quanto Simónio. Apesar de algum receio, ele fantasiava – se assim nos podemos referir a qualquer acção sua, mesmo não visível como são as do pensamento – encontrar-se com algum deles.
Um dia perguntou à tia se conhecia mais inúteis no bairro. Ela respondeu que tinha ouvido falar que a irmã de uma amiga era também inútil. Simónio ficou calado à frente da tia, mas esta compreendeu que o sobrinho gostaria de conhecer a inútil. Prometeu, por isso, tentar organizar um encontro.
Dias mais tarde, a tia dirigiu-se à casa da mulher inútil. Tocou à campainha. Quando a inútil abriu a porta, a tia de Simónio explicou-lhe que o sobrinho gostava de se encontrar com ela. Talvez a inútil também tivesse interesse, só que ela não respondia. Parecia cravada nas palavras impossíveis daquela mulher desconhecida. A tia repetiu: “gostaria de se encontrar com o meu sobrinho, também ele inútil?” Então, de repente, um braço puxou a inútil para dentro de casa. Era a sua irmã. “Que sentido faz dois inúteis se conhecerem?”, disse ela à tia do Simónio, “De que haveriam de falar? Ela está para ali como não estivesse. Olha bem para ela. É de uma incoerência desconcertante. Tem uma boa tarde.”
A tia do Simónio voltou para casa. Aproximou-se do sobrinho. Ia a falar-lhe, mas às primeiras palavras mudou de ideias. Simónio compreendeu. Teria de se conformar em apenas se cruzar com os outros inúteis da cidade, talvez a trocarem um olhar vago, ou até a tocar desajeitadamente nos braços uns dos outros.
Sem avisar a tia, Simónio saiu um dia de casa para não mais regressar.
Abandonou a cidade caminhando através dos campos. Ao terceiro dia a fome e o cansaço apoderavam-se dele. Deitou-se sobre a erva e deixou-se dormir. Acordou durante a noite, debaixo de um céu estrelado. Nunca tinha visto um céu tão estrelado como vira naquela noite. O seu corpo fraco vogava por entre pontos de luz que pareciam observá-lo. À sua volta a natureza indiferente rumorejava através da dança do vento nas ramagens. A relva refrescava-lhe o corpo. Sentia-se preso a si mesmo, embora livre. No meio das árvores, observando os astros, sobre a relva, a sua inutilidade parecia absoluta. Não havia sinais de humanos. Ele até se esquecera que eles existiam. Tudo o que um dia viveu, ou pensou ter vivido, desaparecera naquele momento. Então deixou-se estar deitado. E apesar da fome e do cansaço, esboçou um sorriso que jamais alguém vira.
Então, conta-se que um dia, muitos anos mais tarde, sobre esse metro quadrado onde Simónio ficara, nasceu um pequeno arbusto.
João Guilhoto (Lisboa, 1987). Poeta e escritor, tendo já trabalhado como jornalista, revisor de texto e tradutor. Lançou o seu primeiro livro no Brasil em 2015, O livro das Aproximações, um cruzamento entre ficção e poesia em quarenta fragmentos.
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