Antecipo aqui o que perfeitamente pode vir a ocorrer em qualquer dia próximo. Vou me encontrar com alguns amigos num bar de sinuca. Tenho a deselegante mania de ser pontual. Mas nesse dia exagerei, devo ter chegado uns quinze minutos antes. É muito, eu sei, mal pareço carioca.
Rael, Olavo e Andrei atrasaram, naturalmente, mas não muito. Faz parte. São profissionais e pais dedicados, têm a vida atribulada como todo mundo hoje em dia e, como eu também, estão animados para a nossa rara noite só dos homens. Como nos velhos tempos, cada vez mais velhos. Cerveja, uma ou outra lamúria quase encenada sobre as pequenezas da vida – que nos chateiam enormemente – e a sinuca. Esse é o protocolo. E é tudo o que precisamos. Conversar de maneira presencial e etílica, fora do whatsapp, rir não só dos emoticons. Mas o assunto que venho tratar aqui é outro, diz respeito a um momentinho singular que se passou comigo minutos antes do encontro.
O intervalo entre a minha chegada e a deles foi suficiente não só para que eu conseguisse guardar uma mesa, mas também para que, entre repetidas olhadelas no telefone, eu ouvisse, com interesse disfarçado, as conversas dos vizinhos de bilhar. Passei giz no taco, verifiquei o celular, ajeitei as bolas, limpei o quadro, dei outra olhada na timeline do facebook, instagram rapidinho, pedi um chope e depois bisbilhotei novamente o twitter. Durante todo esse período, ainda mantive minha concentração alerta nas conversas alheias. Esse é o tipo de habilidade que os pontuais, em meio a tantas esperas, aprendem a dominar com maestria ao longo dos anos.
A mesa imediatamente anterior à minha era a que mais me interessava. Não à toa. Era composta por pessoas que provavelmente não me conheciam, mas que eu sabia bem quem eram. Ao menos três delas. Eram o que talvez se possa chamar de personalidades da Internet. Isto é, aquelas pessoas com alguma fama em um nicho bem específico, que postam muito nas redes sociais, e são totalmente desconhecidas do público geral. O que, para alguns, é uma combinação perfeita de fama e anonimato concomitantes. Porque os permite desfrutar de ambos.
Dos três, um era escritor de editora grande. Dois romances seus chegaram a ser finalistas de prêmios importantes, costuma conseguir resenhas em jornais de ampla circulação. Já tentei ler um deles, mas, confesso em segredo, nunca embalei, embora eu goste de acompanhar as opiniões que ele costuma postar. A única mulher do grupo era o que se convencionou chamar de twitteira. Twitteira é um termo até pertinente mas, convenhamos, não soa bem. Não uso outro porque não sei exatamente no que ela trabalha – talvez com tradução. Suspeito que não seja remunerada pelos seus tweets, embora devesse. Tem timing para os comentários curtos, é rápida e de um senso de humor nada convencional. Pela profusão de tweets, eu já supunha que ela não devia desgrudar do celular um minuto, o que se comprovou verídico. E o terceiro era um cartunista da nova geração, daqueles com bons e maus momentos. Alguns ótimos até, líricos, mas com uma tendência a soar simplista ou leviano quando aborda a política. Isso na minha opinião, claro, há quem o idolatre justamente nessas horas.
Foi então que escutei a twitteira dizer a frase. “O Beltrano é tão solitário quanto um personagem literário”. Beltrano? Pensei ter ouvido meu nome. “Vai ficar falando rimado, agora?”, provocou o cartunista, “isso é o vício no twitter, ou então está lendo poesia romântica demais”, completou. “Como assim, Fulana, não entendi” retrucou o escritor. (Note-se que não vou revelar as suas verdadeiras identidades).
“Nunca reparou?”, ela começou a explicar, “dificilmente um personagem literário é repleto de amigos e eventos sociais. Porque se fosse assim ele não teria tempo ou motivo para relatar sua história. O personagem principal, especialmente aqueles narradores em primeira pessoa, em geral são seres solitários, que escrevem justamente por não ter um amigo com quem conversar. Uns coitados”.
Nessa hora tive a estranha sensação de que todos olharam pra mim. Um movimento rápido e furtivo. Terá acontecido? Não posso jurar, mas o fato é que eu estava ali, sozinho também, literariamente solitário. E, pra ser sincero, eu já tinha pensado mesmo em fazer alguma postagem literária tirando proveito do que presenciava. Então eles entraram num estranho silêncio. Um silêncio tão estrondoso que chegou a mim de todas as direções, dos ouvidos à tela do telefone. A coisa se invertia. Eu é que devia estar virando um personagem das postagens da turma ao lado. Quiçá já sendo ridicularizado na forma de um meme. Um arrepio me percorreu. Acredito que eles tenham começado a sussurrar. De cabeça baixa, os pressenti pegando seus celulares.
Atualizar, atualizar, atualizar, apertei inúmeras vezes. Nada. Mas cedo ou tarde eu seria a vítima da sacada genial da vez. Já não havia dúvidas. Atualizar, atualizar, atualizar. Do facebook, passei ao instagram, deixei por último o Twitter. Nada também. Refiz o percurso algumas vezes. Em dado momento precisei levantar a cabeça em busca de ar, como se emergisse de águas turbulentas. E eis que avisto os três. Agora sim, os três. Juntos, caminhando em minha direção, Rael, Olavo e Andrei, os amigos, como um bote de salvação, enfim.
Ainda que eu pudesse ser ali um personagem de ficção, e talvez fosse, ao menos já não era solitário. Tinha amigos e podíamos esquecer do mundo na conversa e na sinuca. Achei melhor desligar o celular antes da primeira partida.
Leandro Jardim (Inglaterra, 1979). É um escritor e letrista carioca, por acaso nascido na Inglaterra em 79. Formado em comunicação e pós-graduado em engenharia de produção. Professor na área de gestão, atualmente é mestrando em administração pela PUC-Rio. Publicou os livros A angústia da relevância (Romance, 2016), Peomas (poesia, 2014) e Rubores (contos, 2012) pela Editora Oito e Meio; além de outros dois de poesia: Os poemas que não gostamos de nossos poetas preferidos (Orpheu, 2010) e Todas as vozes cantam (7Letras, 2008). Possui contos publicados em revistas e antologias, como Porto do Rio do início ao FIM (2012), Veredas – panorama do conto contemporâneo brasileiro (2013) e Para Copacabana, com amor (2013). Como letrista e cantor diletante, lançou os EP’s virtuais O Sonhador (2014) e Sementes musicais para um mundo cibernético (2011) em parceria com Rafael Gryner. Nos últimos anos, outros artistas, como Clara Valente, Diogo Cadaval (banda Mocambo), e Matheus Von Kruger lançaram discos que contam com sua participação em algumas letras.
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